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Nota Técnica da Comissão da Mulher Advogada da OAB SP sobre consentimento de cônjuge para colocação de contraceptivo

By 10 de agosto de 2021No Comments

Através de matéria da jornalista Victoria Damasceno publicada no Jornal “A Folha de São Paulo” (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/08/seguros-de-saude-exigemconsentimento-do-marido-para-insercao-do-diu-em-mulheres-casadas.shtml) foi notícia do que alguns seguro saúde, como a Cooperativa Unimed em algumas unidades (João Monlevade e Divinópolis – ambas em MG, Ourinhos – SP) estão exigindo, para a colocação do contraceptivo DIU ou o Endoceptivo na mulher, conste a assinatura do cônjuge ou companheiro. A reportagem anexou fotos dos termos de consentimento que as mulheres devem preencher, com o espaço para assinatura do cônjuge, companheiro ou parceiro.

Diz ainda, a reportagem, que as cooperativas se baseiam na Lei Federal nº 9.263/96. A exigência é absurda, inconstitucional e viola tratados internacionais de Direitos Humanos das Mulheres assinados e ratificados pelo Brasil, ou seja, com força de lei supraconstitucional.

De pronto, cumpre ressaltar que não existe nenhuma lei no Brasil que condicione a utilização de quaisquer métodos contraceptivos pela mulher Á autorização de cônjuge, companheiro ou parceiro.

O que existe é legislação federal que trata da realização de vasectomia/laqueadura, Lei Federal nº 9.263/96 e prevê que a esterilização em “homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce”. Quanto à necessidade de autorização, a lei é expressa no sentido da obrigatoriedade: “Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

A exigência prevista no §5º do artigo 10º da Lei 9.263/96, acima mencionada, caracteriza verdadeira afronta aos princípios constitucionais de igualdade, ferindo igualmente o princípio de autonomia e os tratados internacionais assinados e ratificados pelo Brasil, e inclusive é alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional de Defensores Públicos – ANADEP (Adin).

A Carta Magna de 1988 assegura, no caput do seu art. 5º, que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e a propriedade.

Com a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil caminhou para redução da desigualdade existente entre homem e mulher. Contudo, historicamente, é conhecida a disparidade de gênero, a luta dos movimentos sociais pelo direito da mulher, pela conquista da autonomia feminina.

Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus objetivos pessoais e de agir na direção desta deliberação. Respeitar a autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando, da mesma forma, a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para outras pessoas. Demonstrar falta de respeito para com um agente autônomo é desconsiderar seus julgamentos, negar ao indivíduo a liberdade de agir com base em seus julgamentos, ou omitir informações necessárias para que possa ser feito um julgamento, quando não há razões convincentes para fazer isto.

E, apesar de todas as normas existentes para igualar homens e mulheres e ao mesmo tempo tratar de maneira individual, como seres humanos donos de suas próprias vontades, as mulheres não são totalmente livres e independentes para tomar determinadas decisões.

Tal exigência/autorização fere o direito individual do ser humano, afronta a autonomia sobre o seu próprio corpo e tira da mulher sua condição de sujeito de direito ao subordinar uma ação que diz respeito somente ao seu corpo à autorização de outrem. Configura ainda o pensamento pelo qual as mulheres vêm lutando por séculos de ser propriedade de um terceiro que decidirá sobre suas vontades, sobre suas escolhas.

A mulher, sujeito autônomo e livre, tem o direito de escolher por si só o que melhor lhe convém quanto ao corpo, quanto à escolha de ser mãe ou não.

Além de inconstitucional, a regra que determina a autorização do cônjuge para a realização da esterilização é imoral, pois coloca a mulher como refém da escolha de um homem, como se a ele pertencesse.

Da mesma forma, é completamente ilegal e impensável que um seguro saúde exija a anuência e/ou consentimento de cônjuge, companheiro ou parceiro da mulher para a escolha de quaisquer contraceptivos. É violação de Direitos Humanos das Mulheres. É violação de Tratados Internacionais.

A CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER (CEDAW), dispõe (grifos nossos):

Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos reafirma o princípio da não-discriminação e proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que toda pessoa pode invocar todos os direitos e liberdades proclamados nessa Declaração, sem distinção alguma, inclusive de sexo,

Considerando que os Estados-partes nas Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos têm a obrigação de garantir ao homem e à mulher a igualdade de gozo de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos,

Observando, ainda, as resoluções, declarações e recomendações aprovadas pelas Nações Unidas e pelas agências especializadas para favorecer a igualdade de direitos entre o homem e a mulher,

Preocupados, contudo, com o fato de que, apesar destes diversos instrumentos, a mulher continue sendo objeto de grandes discriminações,

Relembrando que a discriminação contra a mulher viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas mesmas condições que o homem, na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade,

Preocupados com o fato de que, em situações de pobreza, a mulher tem um acesso mínimo à alimentação, à saúde, à educação, à capacitação e às oportunidades de emprego, assim como à satisfação de outras necessidades,

Convencidos de que o estabelecimento da nova ordem econômica internacional baseada na equidade e na justiça contribuirá significativamente para a promoção da igualdade entre o homem e a mulher,

Salientando que a eliminação do apartheid, de todas as formas de racismo, discriminação racial, colonialismo, neocolonialismo, agressão, ocupação estrangeira e dominação e interferência nos assuntos internos dos Estados é essencial para o pleno exercício dos direitos do homem e da mulher,

Afirmando que o fortalecimento da paz e da segurança internacionais, o alívio da tensão internacional, a cooperação mútua entre todos os Estados, independentemente de seus sistemas econômicos e sociais, o desarmamento geral e completo, e em particular o desarmamento nuclear sob um estrito e efetivo controle internacional, a afirmação dos princípios de justiça, igualdade e proveito mútuo nas relações entre países e a realização do direito dos povos submetidos a dominação colonial e estrangeira e a ocupação estrangeira, à autodeterminação e independência, bem como o respeito da soberania nacional e da integridade territorial, promoverão o progresso e o desenvolvimento sociais, e, em consequência, contribuirão para a realização da plena igualdade entre o homem e a mulher,

Convencidos de que a participação máxima da mulher, em igualdade de condições com o homem, em todos os campos, é indispensável para o desenvolvimento pleno e completo de um país, para o bem-estar do mundo e para a causa da paz.

Tendo presente a grande contribuição da mulher ao bem-estar da família e ao desenvolvimento da sociedade, até agora não plenamente reconhecida, a importância social da maternidade e a função dos pais na família e na educação dos filhos, e conscientes de que o papel da mulher na procriação não deve ser causa de discriminação, mas sim que a educação dos filhos exige a responsabilidade compartilhada entre homens e mulheres e a sociedade como um conjunto,

Reconhecendo que para alcançar a plena igualdade entre o homem e a mulher é necessário modificar o papel tradicional tanto do homem, como da mulher na sociedade e na família,

Resolvidos a aplicar os princípios enunciados na Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, e, para isto, a adotar as medidas necessárias a fim de suprimir essa discriminação em todas as suas formas e manifestações,

Concordam no seguinte:

PARTE I

Artigo 1º – Para fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.

Artigo 2º – Os Estados-partes condenam a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo se comprometem a:

(…)

b) adotar medidas adequadas, legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam toda discriminação contra a mulher;

(…) e) tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa;

Entendemos que condicionar a contracepção da mulher (incluindo a colocação de dispositivo intrauterino) à autorização do cônjuge fere o direito à liberdade individual da mulher, prevista no artigo 1º da CEDAW. Mais ainda, é a discriminação da mulher que não é casada, ou da que vive uma relação homoafetiva, afetando diretamente a sua liberdade ampla e autonomia, eis que estimula e perpetua a discriminação e o controle das mulheres, colocando-as à margem de um tratamento digno, em especial na área da saúde sexual que afeta sua intimidade e sua autonomia.

Outro tratado internacional que baliza os direitos das mulheres é a CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER – “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ” e declara que “A violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, gozo e exercício de tais liberdades.”

Desta forma, a Convenção Belém do Pará determina em seu artigo 1º que “devese entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmibito público como no privado”.

Diz o artigo 2º:

“Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:

a) que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maustratos e abuso sexual;

b) que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e

c) que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.”

Em que pese todo o estabelecido na Convenção ratificada pelo Brasil, que culminou na primeira lei específica de proteção aos Direitos da Mulher, a Lei Maria da Penha – Lei  nº 11.340/2006, o fato é que as mulheres brasileiras estão à mercê de retrocessos e violações aos direitos humanos conquistados, e por anos trabalhados para perpetuar a garantia de uma vida livre de violência às mulheres.

Os direitos reprodutivos são direitos humanos que compreendem a decisão de homens e mulheres sobre o desejo de ter filhos, o número de filhos que desejam ter, em que momento desejam ter e como desejam fazê-lo, de forma autônoma, sem discriminação, violência ou coerção. Trata-se, também, do acesso a informações, métodos, meios e técnicas conceptivas (para ter filhos) e contraceptivas (para não ter filhos).

Essa noção de direitos reprodutivos provém da Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo, em 1994, cujo documento final é um dos acordos internacionais a que o Brasil aderiu, comprometendo-se a tomar as medidas necessárias para a sua implementação no âmbito interno.

Já os direitos sexuais são direitos relacionados ao exercício e à expressão da sexualidade, de forma livre, sem discriminações. Envolvem o direito de escolha de ter ou não relações sexuais, o direito de expressar livremente a orientação sexual, o direito à relação sexual independente da reprodução e o direito ao sexo seguro, com o objetivo de prevenir gravidez indesejada e DST/HIV/aids. Essa noção de direitos sexuais, que diferencia sexualidade de reprodução, é resultante da declaração assinada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995. O Brasil também aderiu a esse documento internacional, comprometendo-se politicamente a tomar medidas para a sua implementação através de leis e políticas públicas específicas.

A garantia ao livre e igualitário exercício dos direitos sexuais e reprodutivos abrange ações e recursos tanto para a concepção, quanto para a anticoncepção. Assim, a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, bem como, à uma vida livre de violência para as mulheres é um direito humano que deve ser garantido pelo Estado Brasileiro e respeitado por todos os entes, inclusive os privados, que aqui se estabeleceram.

Quando a Convenção Belém do Pará determina que é violência contra a mulher qualquer ação ou omissão que lhe cause danos físicos e/ou psicológicos é preciso observar que qualquer conduta que a coloque nas situações acima é uma grave violação de seus direitos fundamentais. A mulher como cidadã e sujeito de direitos que deve ter respeitado o exercício pleno de escolha de seus direitos sexuais e reprodutivos.

A professora e Doutora Carmen Simone Grillo Dinizi, diz em seu artigo “MATERNIDADE VOLUNTÁRIA, PRAZEROSA E SOCIALMENTE AMPARADA”:

“Maternidade voluntária – Por voluntária, estávamos pressupondo que a maternidade deveria ser uma escolha baseada na vontade consciente da mulher e/ou do casal (apesar do papel exato do parceiro na decisão reprodutiva ainda ser um objeto de polêmica entre nós). Isto implicaria na possiblidade de uma escolha, na medida do possível, livre de constrangimentos biológicos — a gravidez como resultado de uma relação desprotegida por falta de acesso aos métodos contraceptivos — ou psicológicos e sociais, como a pressão para que toda e qualquer mulher seja mãe, como condição para ser “normal” ou “completa”. Dessa forma, a maternidade voluntária pressupunha o livre acesso à contracepção e à interrupção da gravidez indesejada, assim como o reconhecimento social das mulheres como indivíduos plenos, para além de ter ou não ter filhos.”

Maternidade prazerosa Por prazerosa, nossa intenção era a de questionar o mito da “mater dolorosa”, o da mãe sofredora tão bem representada pela expressão “ser mãe é padecer no paraíso”. Nossa cultura judaico-cristã exalta o valor do sofrimento e do sacrifício como condições necessárias à maternidade, de forma a fazer equivaler a ela um certo masoquismo “normal”. Assim, a boa mãe seria a que sofre bastante na gravidez e mais ainda no parto, que sacrifica sua vida profissional e sexual pelo amor e doação aos filhos e que aceita passiva e alegremente cada um destes limites e dores como conseqüências naturais da maternidade. O movimento de mulheres vem reivindicar que a maternidade, como qualquer trabalho humano livremente escolhido, está potencialmente cheio tanto de limites quanto de possibilidades, tanto de delícias quanto de dificuldades, e que boa parte do sofrimento associado a ela é socialmente construído, e não resultado “natural”desta escolha. Nós, como feministas, queremos ampliar nossa cota de prazer e realização potencialmente contidas na maternidade, e escolhemos associar a ela, prioritariamente, a satisfação e não o sacrifício. Isto implica em reconhecer a autoridade das mulheres para definir suas prioridades no ciclo gravídico-puerperal”

Atendendo aos compromissos assumidos perante a Organização dos Estados Americanos, o Brasil, em sua Carta Cidadã tem entre seus princípios e objetivos fundamentais a igualdade, conforme se observa nos dispositivos abaixo transcritos:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(…)

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

(…)

  • 2º – Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

(grifos nossos)

Ainda, é importante atentar ao artigo 7º da Convenção de Belém do Pará, que diz:

“Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e concordam em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar a dita violência e empenhar-se em:

a) abster-se de qualquer ação ou prática de violência contra a mulher e velar para que as autoridades, seus funcionários, pessoal e agentes e instituições públicas se comportem conforme esta obrigação;

b) atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;

c) incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e adotar as medidas administrativas apropriadas que venham ao caso;

d) adotar medidas jurídicas que exijam do agressor abster-se de fustigar, perseguir, intimidar, ameaçar, machucar ou pôr em perigo a vida da mulher de qualquer forma que atente contra sua integridade ou prejudique sua propriedade;

e) tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher;

f) estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher que tenha sido submetida a violência, que incluam, entre outros, medidas de proteção, um julgamento oportuno e o acesso efetivo a tais procedimentos;

g) estabelecer os mecanismos judiciais e administrativos necessários para assegurar que a mulher objeto de violência tenha acesso efetivo a ressarcimento, reparação do dano ou outros meios de compensação justos e eficazes; e

h) adotar as disposições legislativas ou de outra índole que sejam necessárias para efetivar esta Convenção. ” (grifos nossos)

A alínea “e” da Convenção de Belém do Pará é explícita no sentido de que o Estado membro deverá tomar TODAS AS MEDIDAS PARA MODIFICAR OU ABOLIR LEIS E REGULAMENTOS VIGENTES QUE RESPALDEM A PERSISTÊNCIA OU A TOLERÂNCIA DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.

Em 1992 o Comitê de Monitoramento da aplicação da CEDAW emitiu a Recomendação Geral nº 19ii , que no seu artigo 1º explicita o entendimento de que toda violência praticada contra a mulher é uma forma de discriminação que inibe gravemente a capacidade da mulher de gozar dos direitos e liberdades e pé de igualdade com o homem.

Na Recomendação 19 encontramos o entendimento daquela corte de que a discriminação contra a mulher restringe especialmente o direito ao mais alto nível possível de saúde física e mental (item 7, alínea “g”).

Este entendimento estabelece que a prática de discriminação contra a mulher constitui uma infração ao artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 no que tange ao direito da mulher à saúde física e mental (saúde integral).

Reafirmando a relação entre o direito da mulher à saúde integral e o direito a uma adequada assistência, o Comitê CEDAW elaborou posteriormente a Recomendação Geral nº 24 que esclarece em seu Artigo 11 que: “As medidas tendentes a eliminar a discriminação contra a mulher não se consideram apropriadas quando um sistema de atenção médica careça de serviços para prevenir, detectar e tratar enfermidades próprias da mulher. A negativa de um Estado Parte de prever a prestação de determinados serviços de saúde reprodutiva à mulher em condições legais resulta discriminatória.”

Pela Recomendação nº 24 da CEDAWiii vemos que a negativa de uma assistência médica adequada à mulher, como acontece no caso de condicionar a colocação do DIU à anuência de um terceiro (cônjuge, companheiro ou parceiro) é uma prática discriminatória contra a mulher. Essa mesma Recomendação esclarece também outros pontos fundamentais sobre o direito da mulher à saúde:

a) As mulheres têm o direito de estar plenamente informadas, por pessoal devidamente capacitado, de suas opções para aceitar tratamento ou investigação, incluídos os possíveis benefícios e os possíveis efeitos desfavoráveis dos procedimentos propostas e as opções disponíveis – artigo 20; e

b) Os Estados Parte devem garantir que não só o acesso a uma assistência médica de qualidade, mas também que essa assistência seja aceitável para a mulher. São aceitáveis os serviços que se prestam se é garantido o consentimento prévio DA MULHER com pleno conhecimento de causa, se respeita sua dignidade, se garante sua intimidade e se tem em conta suas necessidades e perspectivas – artigo 22.

O Brasil se obrigou a cumprir as normativas dos tratados internacionais contra a discriminação e a violência contra a mulher. Por isso, a exigência de anuência e/ou autorização de terceiros para que a mulher possa utilizar como contracepção o dispositivo intrauterino ou endoceptivo é violação de direitos humanos, violência contra a mulher e deve ser rechaçada.

Com essa Nota Técnica, a Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, agindo em conformidade com seu regimento interno, embasa a ilegalidade da exigência noticiada no jornal “A Folha de São Paulo”, e solicita que os órgãos responsáveis no cumprimento dos direitos humanos e nos direitos das mulheres tomem as medidas cabíveis para evitar retrocesso e perda de direitos fundamentais garantidos pelos Tratados Interamericanos assinados e ratificados pelo Brasil.

COMISSÃO DA MULHER ADVOGADA DA OAB-SP, 05 de agosto de 2021.

i http://mulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/10/maternidade_voluntaria.pdf

ii Recomendação nº 19 – CEDAW: http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/recommendations/recomm.htm#recom19

iii Recomendação nº 24 – CEDAW: http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/recommendations/recomm.htm#recom24