Alteração da regra do voto de qualidade do Carf é medida de coação do governo
Saiu na última quinta-feira (12) o primeiro pacote econômico do governo federal. O assunto preponderante foi a questão tributária. Para variar, mais uma vez colocaram a mão no bolso do contribuinte. Entra e sai governo e o jeito escolhido pelos governantes para fazer o ajuste fiscal é arrecadar receita e não mexer nos gastos públicos.
Uma das medidas propostas é a reintrodução do voto de qualidade a favor do fisco no Conselho de Administração de Recursos Fiscais, ou seja, ressuscitaram a galinha dos ovos de ouro – neste caso, o Carf. Com essa medida, o governo manda um recado claro aos julgadores desse tribunal administrativo: “Precisamos arrecadar R$ 250 bilhões para cobrir o rombo das contas públicas!”. Quem paga o pato é, novamente, o contribuinte.
Para quem não sabe a história toda, o Carf é um tribunal administrativo do Ministério da Fazenda que julga autuações realizadas contra os contribuintes. Esse tribunal é um colegiado, paritário, formado por julgadores do fisco e dos contribuintes. Se desse empate nos casos, antes do pacote do governo, o contribuinte ganhava. Com a mudança, agora quem ganha como empate é o fisco.
Atualmente, temos um contencioso tributário de R$ 1 trilhão no conselho. É bom que se diga que o valor em discussão no Carf cresceu muito nos últimos anos – não por culpa dos contribuintes, mas sim por culpa do fisco e da pandemia. Foi a greve dos fiscais que parou o Carf e fez com que o valor em discussão crescesse e se acumulasse.
A propósito, desse R$ 1 trilhão é bem provável que 30% correspondam ao tributo eventualmente devido, e os demais 70% a juros Selic e multas. Nos últimos 20 anos, o Brasil teve a maior taxa de juros do mundo e foram aplicadas multas de até 150% do valor principal. Esse contencioso é impagável. Será que o governo não percebe isso? Insiste em medidas de transação que são ineficazes e não estimulam os contribuintes a solucionar esses contenciosos.
A única solução é uma medida de perdão dos juros e multa em todos os casos e negociar o valor do principal. Os contribuintes não deixarão de ir ao Judiciário com teses factíveis de serem julgadas favoráveis a eles, uma vez que o gestor privado tem o dever de zelar pelo patrimônio das empresas. Além disso, os maiores valores autuados são de empresas de grande porte e que estão no mercado de capitais. As medidas de solução alternativa de conflitos, como a transação, são muito importantes, mas elas precisam estar conectadas com a realidade das empresas.
A alteração da regra do voto de qualidade do Carf, neste momento, é mais uma medida de coação do governo federal contra o contribuinte e só trará mais insegurança ao mercado e ao investimento estrangeiro. A carga tributária brasileira chegou ao seu limite. O ajuste fiscal precisa ser feito nas despesas públicas, não aumentando a tributação das empresas.
E bom ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já vinha analisando a questão do voto de qualidade e dava uma indicação pela inconstitucionalidade dessa sistemática, dai porque totalmente desnecessário esse retrocesso pretendido pelo fisco federal. Ou seja: o governo atual quer ressuscitar norma jurídica que já vinha sendo contestada no Judiciário. Ao invés de trazer segurança para os contribuintes, esse pacote econômico traz insegurança jurídica e mais contencioso.
Achar que o Carf é a solução para a questão da falta de controle dos gastos públicos é um grande erro. Achar que o Carf é a galinha dos ovos de ouro e que de lá sairão milhões para cobrir as despesas públicas também é um enorme equívoco. Esse erro já foi cometido por outros governos que viram no contencioso tributário a solução para todos os seus problemas. Contencioso tributário desse porte só se resolve com diálogo e acordo. A pressão sobre as empresas gera estagnação e falta de crescimento econômico. Temos que mudar esse disco e tocar uma nova música: de consenso e transação.
Diz a fábula da galinha dos ovos de ouro que seu dono, ao abrir a barriga dela atrás dos ovos de ouro, encontrou apenas suas tripas. Será que a fábula vai se repetir com o Carf?
Roberto Quiroga é advogado tributarista, presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB SP, professor de direito da USP e sócio-diretor do escritório Mattos Filho