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NotíciasPonto de vista

Mudar Marco Civil da Internet ameaça liberdade de expressão

By 27 de março de 2023No Comments

Autores da ideia do projeto original veem chances de retrocesso nas propostas de regulação

Ronaldo Lemos
Advogado, presidente da Comissão de Tecnologia e Inovação da OAB SP, professor das Universidades de Columbia em Nova York e Tsinghua (em Pequim). É fundador do ITS ( Instituto de Tecnologia e Sociedade) Rio. Apresenta a série Expresso Futuro no Canal Futura e é colunista da Folha

Carlos Affonso Pereira de Souza
Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade e um dos autores da ideia do Marco Civil da Internet

Sergio Branco
Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade e um dos autores da ideia do Marco Civil da Internet

[RESUMO] Autores da ideia de criar o Marco Civil da internet no Brasil comentam o sucesso alcançado com o projeto, que envolveu ampla participação da sociedade e serviu de exemplo a vários países por sua defesa de direitos essenciais, e lamentam o retrocesso que se vislumbra com as propostas de alterá-lo de forma apressada e excludente, valendo-se de conceitos imprecisos e subjetivos, o que pode trazer sérios riscos à liberdade de expressão.

Se tudo continuar como está, o Marco Civil da Internet, a lei que regulamenta a rede no país, deve ser modificado para pior em breve. Esse tema interessa a todos, mas nos toca de forma especial. Afinal de contas, somos os autores da ideia de se criar um Marco Civil para a Internet no país. Esse projeto surgiu em 2007, quando nós três, coordenando um grupo de pesquisadores sobre direito e tecnologia, propusemos que a primeira lei sobre a rede no Brasil protegesse direitos em vez de criminalizar pessoas.

Em outras palavras, uma lei que protegesse a liberdade de expressão, a privacidade, a transparência de dados governamentais e tantos outros direitos, fazendo com que o Marco Civil obtivesse aclamação internacional.

Um ponto importante é que somos os autores da ideia do Marco Civil (batizado em um almoço em 2007), mas não somos os autores do texto da lei. Esse texto foi escrito de forma colaborativa por um amplo e longo processo que em 2009, a partir da liderança do Ministério da Justiça, se desenvolveu a partir de uma inovadora iniciativa de participação online, totalmente aberta e transparente, gerando o texto de lei que seria debatido e aprovado em 2014 pelo Congresso Nacional.

O processo de construção permitiu a participação de todos os setores da sociedade, da comunidade científica à Polícia Federal, da sociedade civil às empresas de telecomunicações.

O sucesso desse processo aberto com uma infinidade de autores, pais e mães em toda a parte, causou um impacto global. Inúmeras teses de mestrado e doutorado foram escritas sobre ele. Diversos países se inspiraram no processo desenvolvido no Brasil, como a Itália na construção de sua carta de direitos para a internet, que por sua vez inspirou a França com sua iniciativa de “República Digital”, gerando impactos até mesmo em organismos internacionais como a ONU no seu fórum de governança da internet.

Em suma, o Brasil naqueles anos de 2007 a 2014 virou modelo internacional de construção legislativa aberta, capaz de produzir uma lei com calibre para influenciar o debate global sobre regulação da internet.

É esse modelo aberto e inclusivo que está sendo derrotado logo na saída pelo debate atual sobre como regulamentar a internet no país, dez anos depois. No Brasil de 2023, a regulamentação da internet está sendo feita de portas fechadas, de forma apressada e excludente e, sobretudo, de cima para baixo, sem a participação ampla dos muitos setores organizados ou difusos da sociedade, como foi da primeira vez.

Essa derrota em si já é motivo de preocupação. O processo aberto de construção do Marco Civil mostrou ao menos duas vantagens. A primeira é que a qualidade do resultado é melhor. Nesse sentido, o Brasil ousou construir seu próprio modelo para tratar da internet no país, em vez de importar uma solução pronta da Europa ou dos Estados Unidos.

Hoje, sabemos que a União Europeia tornou-se uma grande superpotência regulatória, especializada em exportar seus modelos. Por exemplo, a lei que protege dados pessoais no Brasil, de 2018, tem grande aderência ao modelo europeu. As propostas até agora aventadas para transformar o Marco Civil são frequentemente um copia e cola de modelos europeus. Em outras palavras, os tempos de pensamento original brasileiro, que ousa criar seu próprio caminho conhecendo os erros e os acertos das experiências internacionais, estão de férias.

Nem tudo que funciona na Europa ou nos Estados Unidos é a melhor solução para os problemas brasileiros. Contudo, a situação é ainda mais preocupante quando se percebe que alguns dos modelos europeus que se procuram importar nem mesmo foram testados lá fora.

É claro que ficamos desapontados com o derrotismo que se materializou na largada, mas somos otimistas. Temos a convicção de que, se todos os setores da sociedade participarem do debate, vamos dar a volta por cima e escapar da armadilha fácil do recorta e cola, sabendo aproveitar as lições aprendidas em outros países e entender onde o calo aperta para aperfeiçoar a regulação no Brasil.

A segunda vantagem do processo aberto e colaborativo é que todos os setores interessados na sua construção tiveram de colocar suas cartas na mesa de forma transparente. Isso permitiu visualizar os vencedores e perdedores em cada disputa sobre temas constantes do Marco Civil, divididos por cada setor, conforme o gráfico abaixo.

Como dá para ver, o Marco Civil é uma lei que não teve vencedores nem perdedores claros. Todos os setores ganharam um pouco do que queriam, e perderam também.

 

Alguns tiveram mais demandas atendidas que outros, mas nenhum foi totalmente vencedor ou derrotado. Em outras palavras, o Marco Civil não é uma lei das big techs, nem dos radiodifusores, nem da Polícia Federal, nem da sociedade civil, nem das telcos, nem do Poder Executivo.

É uma lei que conseguiu um delicado equilíbrio entre posições divergentes. Por isso mesmo, teve tanta repercussão internacional e impacto no país, perdurando até hoje como legislação central para a internet. Seu apelido, dado pelo inventor da web, sir Tim-Berners Lee, e pelo saudoso professor italiano Stefano Rodotá, é de “a constituição da internet no Brasil”.

A controvérsia atual sobre o Marco Civil diz respeito principalmente a um ponto específico: o regime de responsabilidade das plataformas com relação a conteúdo postado por seus usuários. Esse foi, de longe, o tema mais debatido na época da construção do projeto.

A versão original do texto do Marco Civil sobre o tema foi inclusive derrotada no processo de consulta pública. A proposta inicial era de que fosse implementado um sistema de notificação e retirada de postagens. As plataformas poderiam ser responsabilizadas caso, uma vez notificadas de que um determinado conteúdo era ilícito, não agissem para remover a postagem.

Essa proposta foi derrotada no debate. Constatou-se que, se esse sistema fosse implementado, a tendência das plataformas seria remover praticamente todos os conteúdos que fossem notificados. Com medo da corresponsabilidade com o autor da publicação problemática, seria melhor tirar tudo que fosse notificado do ar. A liberdade de expressão sofreria importantes restrições.

Outra proposta então surgiu. Em vez de fazer com que as plataformas fossem responsabilizadas depois de não cumprir com qualquer notificação, essa responsabilidade viria em caso de não cumprimento de uma ordem judicial determinando a remoção do conteúdo. Isso traria dois efeitos: o Judiciário era reconhecido como a instância para definição do que é lícito ou ilícito, ao mesmo tempo em que as plataformas poderiam agir para remover o que fosse contrário aos seus termos de uso.

Essa outra proposta foi então amplamente debatida e acabou prevalecendo. Ela introduziu o Poder Judiciário na equação, com o papel de funcionar como baliza central e final da liberdade de expressão, como aliás manda a Constituição Federal.

Tanto é assim que a redação final do artigo 19 ganhou um tom quase didático, porque é um dos poucos textos de lei no país que fazem questão de explicar para que servem. Vale ler sua redação:

“Artigo 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”

Ao formular esse texto, o Brasil ousou criar um modelo próprio para tratar da questão. Nos Estados Unidos, a seção 230 do CDA (lei que rege a matéria) confere às plataformas uma dupla imunidade: elas não respondem pelos conteúdos postados por seus usuários e nem pelos atos de moderação que adotem para remover conteúdos que entendam ser contrários às suas regras.

Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, por aqui as plataformas não foram imunizadas como um todo. Elas devem cumprir as ordens judiciais que determinam a remoção de conteúdos (sendo responsabilizadas caso não o façam) e respondem também pela moderação abusiva ou irregular. O que não falta nos tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil são casos em que as cortes determinam o restabelecimento de postagens removidas ou a condenação da plataforma pela suspensão indevida de perfis ou conteúdos.

Foi inclusive o desenho e a experiência criados a partir do Marco Civil que permitiram ao Tribunal Superior Eleitoral agir rapidamente contra conteúdos violentos e que atentassem contra a democracia durante o período eleitoral. Embora criando um processo próprio que atendesse à urgência típica das eleições, o modelo construído pelo TSE não era incompatível, mas sim alicerçado em premissas do Marco Civil, como a identificação do conteúdo infringente e o cumprimento de determinação judicial.

A esse respeito, também é muito importante entender que, embora a responsabilidade pelo conteúdo alheio apenas advenha, para a plataforma, caso esta desrespeite a ordem judicial, não há qualquer impedimento a que a plataforma remova, por iniciativa própria ou por notificação, conteúdo ilícito ou que viole direito ou seus termos de uso.

Além disso, como dito, também há decisões judiciais responsabilizando as plataformas pela retirada indevida de conteúdo lícito. Ou seja, a atuação das plataformas não se restringe apenas a aguardar ordens judiciais para remoção de conteúdo. Elas podem remover conteúdo indevido —e apenas conteúdo indevido. O que escapar a esse delicado balanço deve ser levado à decisão do Poder Judiciário.

O Marco Civil previu inclusive que seria necessário no futuro criar exceções à regra, como fica explícito na redação do artigo: ressalvadas as “disposições legais em contrário”. Foi isso que aconteceu. Há hoje no direito brasileiro exceções a essa regra geral. Uma delas diz respeito ao que se chama popular (e inapropriadamente) “pornografia de vingança”.

Quando alguém posta um vídeo íntimo não consentido, as plataformas são obrigadas a remover o conteúdo imediatamente, sem a necessidade de ordem judicial prévia. Possuem o dever de cuidado com relação a esse tipo de conteúdo.

Note-se que só faz sentido estabelecer um dever de cuidado com relação a elementos facilmente identificáveis —em outras palavras, elementos objetivos e desprovidos de argumentos de interesse público que possam justificar a publicação.

No entanto, um dever geral de cuidado imposto com relação a conceitos subjetivos, ideológicos ou imprecisos seria a receita para o desastre. Por exemplo, um dever geral de cuidado que determinasse a remoção de conteúdos “ofensivos”.

O que é ofensivo? Para algumas pessoas, um conteúdo pode ser ofensivo; para outras, não. Na prática, o que se deve aferir é se o conteúdo é ou não lícito, protegido pela liberdade de expressão, ainda que possa soar ofensivo a alguém.

Desse modo, em vez de destruir a regra geral do Marco Civil do artigo 19, como agora se tenta fazer, seria melhor identificar as exceções necessárias a essa regra geral, tal como foi feito com a pornografia de vingança. No entanto, o critério para as exceções é que os conteúdos sejam de natureza objetiva, isto é, facilmente identificáveis. Com exceções baseadas em conceitos subjetivos ou imprecisos, as chances de censura são muito grandes.

Já um regime que criasse um dever de cuidado “geral” e “amplo” para as plataformas pode ser desastroso, porque incluiria conteúdos subjetivos e lícitos no mesmo pacote dos conteúdos objetivos e ilícitos. Se assim fosse, as plataformas seriam responsabilizadas diretamente por não agirem sobre conteúdo alheio considerado ilegal. Lembramos que elas já podem remover tais conteúdos. Entretanto, impor a elas o ônus da exclusão sob pena de responsabilização seria uma ameaça desproporcional à liberdade de expressão.

Nesses casos, é melhor o Poder Judiciário continuar como o árbitro final da liberdade de expressão na internet do que transferir esse poder às plataformas sob a guarida de um “dever geral de cuidado”.

Esse é um ponto curioso. Várias das discussões sobre a reforma do Marco Civil dizem respeito a limitar o poder das plataformas. Não faz sentido fazer isso reduzindo o poder do Judiciário, limitando sua atuação em prol de uma capacidade ampliada das plataformas. Pode ser óbvio, mas vale dizer: não se limita o poder das plataformas aumentando o poder das plataformas.

O modelo brasileiro é, como visto, diferente daquele dos Estados Unidos. A seção 230 exclui totalmente o Poder Judiciário da possibilidade de analisar conteúdos postados nas plataformas da internet. O Judiciário foi excluído da equação pela lei. Pode-se postar o que quiser, de mentiras a incitação à violência, e o Poder Judiciário não poderá agir (claro, há algumas poucas exceções a essa regra). Tanto é que agora a Suprema Corte dos EUA está discutindo a constitucionalidade desse trecho da lei.

No Brasil, estamos fazendo o contrário. O Marco Civil colocou o Poder Judiciário no centro da tomada de decisões sobre conteúdos na rede. Ao fazer isso, consagrou princípios como o devido processo legal, a transparência e a formação de uma jurisprudência acessível a todos na tomada de decisões sobre postagens.

Tudo isso promove a segurança jurídica, essencial para a manifestação de indivíduos e a geração de novos negócios online. Quando o poder de decisão é transferido do Judiciário para as plataformas, e essas decidem sozinhas quais conteúdos remover, nenhum desses princípios está garantido.

Há uma outra importante conquista brasileira que é bem menos comentada. O Marco Civil impediu que o Poder Executivo tivesse qualquer ingerência sobre conteúdos na internet, ao contrário do que ocorre em outros países, onde a internet é menos livre do que no Brasil. De acordo com o texto da lei, isso cabe somente ao Judiciário.

Outorgar a possibilidade de ingerência institucional direta ou indireta ao Poder Executivo sobre a internet é um risco tão grande à democracia quanto a invasão de prédios governamentais. Só que um risco mais persistente. Nesse sentido, vale notar que muitos países autoritários atuam como tais justamente através da criação de instituições que permitem o controle e a ingerência sobre aquilo que os cidadãos falam na internet.

No momento em que o Marco Civil foi criado, a ideia de o Executivo controlar conteúdos na rede chegou a circular no país, mas não prosperou. Não se deve permitir que o Executivo se torne árbitro do que pode ser dito ou circulado por meio da internet. Até porque os governos mudam e as possibilidades de abuso dessa ferramenta são gigantescas.

Em outras palavras, em vez de criar órgãos públicos ou agências para funcionarem como “xerifes” da internet, melhor seria seguir por caminhos que excluam a possibilidade de entregar poderes adicionais para o Executivo interferir na rede. Uma dessas possibilidades é a chamada “autorregulação regulada”.

O nome é confuso, mas significa obrigar a criação de órgãos de autorregulação por parte das plataformas, com regras claras de transparência, metas e análise de impacto. A Lei de Serviços Digitais da Europa criou um modelo como esse. Podemos desenvolver o nosso e fazer melhor, até porque o Brasil conta com a experiência do Conar, criado em um momento em que se temia que a regulação estatal pura e simples estaria indo longe demais.

Outro ponto é que, para ter sucesso no combate às campanhas coordenadas de ataque à democracia, é preciso também sair da rede. Nesse sentido é importante criar instrumentos legais que permitam o chamado “follow the money” (siga o dinheiro), possibilitando identificar quem aporta recursos financeiros de forma oculta em campanhas antidemocráticas.

Campanhas dessa natureza custam caro, envolvem contratação de robôs, estúdios de produção de conteúdo, criação de perfis falsos, e assim por diante. Muitas vezes esse processo de financiamento tem seus passos acobertados. Quem participa dele não quer aparecer. Por isso é importante fortalecer as ferramentas de investigação não só na rede, mas também fora dela.

Em síntese, o caminho para o aperfeiçoamento da regulação da rede no Brasil não passa pela supressão de elementos centrais do Marco Civil, mas sim pelo reconhecimento do seu papel como balizador das novas soluções regulatórias. Elas devem vir a partir dele.

Os autores do presente texto não são saudosistas. Apesar de termos participado da construção dessa importante lei, junto com tantas outras pessoas, acreditamos que há pontos que podem ser aperfeiçoados, como o desenho de um modelo de autoregulação regulada e novas regras que possam aumentar a transparência sobre a atuação das plataformas digitais.

No entanto, somos saudosistas com relação a outra coisa. Do tempo em que era possível ousar construir nossa própria resposta para problemas difíceis, em vez de simplesmente copiar modelos externos para os problemas locais. Liderar em vez de sermos liderados.

Este conteúdo é uma reprodução na íntegra de artigo publicado na Folha de S.Paulo

Crédito da imagem: 22.04.2014/Folhapress