Por Leandro Sarcedo, Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB SP
Trecho do discurso proferido no evento Comissão de Prerrogativas: Passado, Presente e Futuro, realizado em 23/02/2021
Impossível falar de Direitos e Prerrogativas profissionais sem pensar nos homenageados desta noite, os decanos Dr. Paulo Sérgio Leite Fernandes e Dr. Cyro Kusano. É fundamental refletir sobre vossas contribuições para que a Comissão de Direitos e Prerrogativas, a OAB SP e a própria Advocacia chegassem até aqui desempenhando relevantes papéis político e social.
Sobre os homenageados de hoje, tomo a liberdade de indagar a todas e todos sobre as razões de planejarmos um ato de homenagem diferenciado a esses dois Advogados que fizeram do trabalho abnegado na defesa da cidadania e da Advocacia a marca indelével de suas vidas. A esses dois homens interessam muito mais as novidades, os estudos, os avanços, as lutas contra as dificuldades, os enfrentamentos, as vitórias conquistadas e aquelas ainda por vir do que meros palavrórios eruditos que muitas vezes servem apenas para inflar os egos já empanturrados de tanto mimo.
Dr. Paulo Sérgio Leite Fernandes e Dr. Cyro Kusano forjaram-se no estudo e no trabalho. Migraram a esta Capital, o centro nervoso do País, e aqui fizeram a diferença não porque se deleitaram em banquetes ou em discursos vazios, mas sim porque estudaram e trabalharam meticulosamente cada um dos casos cujos patrocínios lhes foram confiados. E ainda encontraram tempo, energia interior e vivacidade para doarem à toda Advocacia uma parte significativa de suas vidas, sempre construindo um sonho no qual a dimensão de justiça pudesse ter a amplitude sonhada pelas almas mais puras.
Adolfo Suárez, ex-primeiro-ministro espanhol que comandou a transição da ditadura franquista à consolidação da democracia constitucional, disse certa vez que “a vida sempre nos dá duas opções: a cômoda e a difícil. Quando tiver dúvida, escolha sempre a difícil”. Trata-se de frase singela, mas muito profunda no significado de seu ensinamento, principalmente quando a contextualizamos em relação ao que significa se envolver nas coisas, nos dramas e nas lutas inerentes à Ordem dos Advogados do Brasil.
Para toda Advogada e Advogado, há, por certo, a escolha cômoda, o caminho mais fácil, que é manter-se à margem dos gigantescos desafios representados pela deliberação de ajudar a guiar o leme dessa instituição vital à dinâmica da sociedade brasileira. Lavar as mãos diante dos arbítrios, fingir que não se vê a sombra do autoritarismo. Autoenganar-se com a desculpa de que essa luta incumbe aos outros e não a si próprio. Dentro dessa cômoda escolha, desprezam e criticam os valorosos trabalhos institucionais em prol da defesa da classe e de toda a sociedade realizados por sua entidade-mãe, aquela que sempre está com suas portas abertas para acolher a todos em momentos de dificuldades.
Contudo, por sorte, existem aqueles que sabiamente duvidam, inclusive, de suas próprias convicções, e perpetuando, assim, suas impressões nas transformações do planeta. Paulo Sérgio Leite Fernandes e Cyro Kusano são homens que cultivam suas dúvidas, porque refletem e reflexionam sobre suas certezas. Daí porque sempre rejeitaram as escolhas fáceis e buscaram alcançar aquelas que pareciam as mais difíceis. Daí porque a naturalidade de seu engajamento nas lutas da Ordem dos Advogados do Brasil e, ainda mais, na Comissão de Direitos e Prerrogativas, à qual devotaram bons anos de suas vidas. A difícil escolha de não se calar perante o arbítrio, escolhendo trilhar o difícil caminho da convicção de que todos nós temos um papel absolutamente importante a desenvolver na luta pela Advocacia, que se resume na luta pela cidadania e pela democracia. Uma luta que não tem cancha, pista, ringue ou tabuleiro definidos. Luta que se trava em todos os lugares, o tempo todo, desde que exista um cidadão com seus direitos violados e que necessite ser defendido. Lutamos nas delegacias de polícia, nos presídios, nas audiências, nas sustentações orais, nos balcões de prefeituras, da previdência social, na realização de perícias, na contradita de testemunhas. Lutamos ainda na pesquisa, na escrita, no domínio das filigranas do processo eletrônico. Essa é a vida da Advocacia: lutar. E esta é a vida de quem, na dúvida, se doa, escolhe a opção mais difícil, a de lutar pelo outro. Esta é a opção daqueles que, como Paulo Sérgio Leite Fernandes e Cyro Kusano, engajaram-se não apenas com a Ordem dos Advogados do Brasil, mas com a luta pelos direitos e prerrogativas profissionais da Advocacia, a última resistência contra os abusos e autoritarismos.
Em vista desse exemplo que a vida de ambos os homenageados lega a todas e todos os presentes, nossa palavra, neste momento, somente pode ser um sonoro muito obrigado.
Paulo Sérgio Leite Fernandes, nascido em Santos, no ano de 1935, graduou-se na Universidade Católica de Santos em 1958, ano em que o Brasil ganhava o mundo na Copa da Suécia e o planeta começava a conhecer o ritmo da bossa-nova. Iniciou e estabeleceu sua carreira na terra natal por mais de dez anos, tendo inclusive sido eleito para o cargo de secretário da 2ª Subseção de Santos no ano de 1969, quando o País já enfrentava a feroz Ditadura Militar. Após perder sua primeira esposa, muda-se com os filhos para a Capital, num momento que marca um grande recomeço de sua vida e do qual se recorda com orgulho e reconta sempre com muita beleza, com o lirismo que lhe é peculiar.
Já na Capital, sempre escolhendo trilhar os caminhos mais difíceis nos momentos de incerteza, engaja-se na lida da Secional Paulista ainda em meados da década de 1970, quando a sociedade mal respirava ante as forças ditatoriais, e momento em que a Advocacia e a própria OAB SP passaram a exercer papel de absoluto protagonismo na resistência ao Regime, na defesa dos presos políticos e na construção de uma transição possível à Democracia. Como membro da então Comissão de Redação da Secional, participou ativamente da escrita do célebre e corajoso discurso, lido na abertura do Ano Judiciário pelo então Presidente da Ordem Cid Vieira de Souza, em que se comparava o badalar dos sinos da Catedral da Sé ao tempo faltante à redemocratização do País.
Numa época em que a Comissão de Direitos e Prerrogativas tinha uma outra conformação, com uma composição múltipla eleita pelo Conselho Secional, esteve por cinco vezes entres os escolhidos para defender a Advocacia dos arbítrios e violações em tempos em que grassava a violência dos coturnos espezinhando a sociedade que buscava a liberdade.
Entre 1973 e 1982, compôs a Comissão de Direitos e Prerrogativas ao lado de Advogados que deixaram seus nomes na história da OAB SP, da Advocacia e mesmo do País:
– Domingos Marmo, Salim Arida e Virgílio Manoelino Pinto, em 1973 e 74;
– Álvaro Cury, J. B. Viana de Moraes, José Carlos Dias e Miguel Reale Júnior, em 1975 e 76;
– Álvaro Cury, Márcio Thomaz Bastos e Nilton Silva Júnior, em 1977 e 78;
– Álvaro Cury, Luiz Carlos de Azevedo, Nilton Silva Júnior, em 1979 e 1980;
– Cantídio Salvador Filardi, Luiz Carlos de Azevedo, Nilton Silva Júnior, em 1981 e 1982.
Como se vê, muitos passaram, alguns insistiram, mas somente Paulo Sérgio Leite Fernandes permaneceu por uma década à frente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB SP, numa demonstração assombrosa de resiliência à qual todos somos imensamente gratos.
Nos últimos 50 anos, a sua vida confunde-se com a história da própria OAB SP. Todos conhecem ou viveram alguma história protagonizada por Paulo Sérgio. Seus livros tratando de prerrogativas profissionais da Advocacia, em tempos prévios à internet, eram fontes de pesquisa inesgotáveis para as Advogadas e Advogados que vieram depois e se embrenharam no trabalho de defender os colegas e a própria Advocacia do arbítrio e das violações. Dr. Paulo Sérgio Leite Fernandes, a cidadania e a democracia lhe agradecem. A Secional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil lhe agradece.
Cyro Kusano, nascido no ano de 1951, oriundo de Presidente Bernardes, lá pertinho da divisa com o Mato Grosso do Sul. Veio para São Paulo cursar a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde se graduou em 1976. Envolveu-se profundamente na vida e na política estudantil, tendo morado da Casa do Estudante, situada na Avenida São João, e prestado serviço social como estagiário voluntário do Departamento Jurídico XI de Agosto. Casou-se com uma colega de curso, Dra. Sylvia Bar Kusano, com quem teve quatro filhos.
Iniciou sua vida profissional no escritório do grande Advogado e tribuno do júri Dr. Tales Castelo Branco, época em que foi se introduzindo na vida e na lida da OAB SP. Vivendo intensamente a fase de redemocratização, da renovação dos ideais e da fé em nosso País, inclusive discussões da Assembleia Nacional Constituinte, foi eleito Conselheiro Secional nos biênios 1987/88 e 1989/90, oportunidades em que esteve à frente da Comissão de Direitos e Prerrogativas ao lado do Advogado de São José do Rio Preto, Paulo Nimer. Lançou-se, por duas vezes, candidato à Presidente da OAB SP, nos anos de 1990 e 1992, sendo que, na segunda vez, a vitória não chegou por uma margem mínima de votos.
Conquanto não tenha vencido as eleições, Cyro Kusano foi um vencedor no plano das ideias e da construção política de nossa Advocacia e da OAB SP. Do movimento que capitaneou, surgiram muitos Advogados que posteriormente ocuparam espaços importantes na história desta Secional. Sempre incentivou todos aqueles que com ele trabalharam a se envolverem nas coisas da Ordem, como opção ética de devolução à sociedade e à própria profissão daquilo tudo que recebemos quando ingressamos nos quadros da Advocacia.
Cyro Kusano, há trinta anos, foi um dos precursores a defender as ideias de autonomia das Subseções e de impulso à regionalização das atividades da Ordem. Foram necessárias três décadas para que a Advocacia do Estado estivesse preparada para assumir propostas de vanguarda como essas, o que acabou acontecendo em 2018, quando escolheu o Presidente Caio Augusto Silva dos Santos para ser o representante e o porta-voz dessa Advocacia, que finalmente compreendeu que não necessita de intermediários para ter seus pleitos ouvidos, que pode acreditar que a realização de seus sonhos deriva de seu esforço e não de seu sobrenome.
A comprovar a afinidade do pensamento político-institucional que une Cyro Kusano a Caio Augusto, basta dizer que cinco integrantes da atual gestão da OAB SP tiveram parte do seu caminho profissional e institucional trilhado ao lado de Cyro: Carlos Kauffmann, Conselheiro Secional e Presidente do TED; Marcos Soares, Conselheiro Secional e Presidente da Comissão de Segurança Pública; Ana Carolina Moreira Santos, Conselheira Secional e Vice-Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas; Eduardo Levy Pichetto, Vice-Presidente para Área Penal da Comissão de Direitos e Prerrogativas, bem como eu mesmo, Leandro Sarcedo, Conselheiro Secional e atual Presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas.
Dr. Cyro Kusano, a exemplo do Dr. Paulo Sérgio, penso que mais não é preciso dizer para lhe homenagear e reconhecer seus trabalhos e sua devoção à nobre causa da Advocacia. A cidadania e a democracia lhe agradecem. A Secional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil lhe agradece.
Espelhado em tão exitosos exemplos, guardo em meu coração a sincera esperança de que não foi em vão que deixei minha terra natal, minha sempre querida Piracicaba, para estudar e trabalhar. Tendo escolhido servir à Advocacia e trabalhar voluntariamente pela OAB SP, tive a honra de caminhar ao seu lado neste triênio, Presidente Caio Augusto, cogerindo ao lado da Conselheira Ana Carolina Moreira Santos a Comissão de Direitos e Prerrogativas, na qual – espelhado em exemplos históricos tão inspiradores e trabalhando duro para construir o presente e deixar algum legado para o futuro – espero conseguir deixar algum pequeno tijolo nesta gigantesca construção, que poderá, algum dia, ser lembrado por alguma Advogada ou Advogado no futuro, como hoje temos a honra de poder homenagear esses dois grandes exemplos de todos nós: Paulo Sérgio Leite Fernandes e Cyro Kusano. Serei, então, um homem realizado.