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OAB SP se posiciona contra veto presidencial ao ‘PL Padre Júlio Lancellotti’

By 16 de dezembro de 2022No Comments
OAB SP se posiciona contra veto presidencial ao 'PL Padre Júlio Lancellotti'

Em nota, Comissão de Direito Urbanístico e CDH defendem projeto, que visa proibir o uso de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público, utilizados principalmente pela população em situação de rua

 

No último de 13 de dezembro, o presidente Jair Bolsonaro vetou, na íntegra, o Projeto de Lei (PL) 488/2021, conhecido como “PL Padre Júlio Lancellotti”, aprovado recentemente no Parlamento.

O referido projeto tem como objetivo proibir o uso de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público, utilizados mormente pela população em situação de rua.

O cenário atual dos grandes centros urbanos conta com a presença de uma camada da população que, sem opções de moradia acessível, faz do espaço público seu lar. Só no Estado de São Paulo, estima-se que há mais de 80 mil moradores em situação de rua.

É notório que o crescimento da população em situação de rua, nos últimos anos, agravado pela crise econômica, sanitária e social oriunda da pandemia da Covid-19, levou, também, ao aumento da instalação de equipamentos urbanos nos espaços públicos destinados a dificultar ou mesmo impossibilitar o acesso e a permanência de pessoas nesses espaços.

Como exemplo de instalações urbanísticas hostis, citem-se a instalação de pinos metálicos pontiagudos e cilindros de concreto nas calçadas; bancos de praça sem encosto, com braços ondulados ou com braços divisores do espaço do assento; cercas eletrificadas; além de pedras ásperas e pontiagudas inseridas embaixo de pontes, marquises e viadutos, bem como em áreas limítrofes entre calçadas e prédios.

O  PL proposto tem como objetivo proibir o uso dessas técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público, impedindo que o poder público e a sociedade civil agreguem aos locais elementos que lhes são estranhos e que não têm qualquer outra função, senão o afastamento de uma população já fragilizada e em situação de rua.

Em suas razões de veto, alegou o presidente que o projeto “poderia interferir na função de planejamento e de governança locais da política urbana ao definir as características e as condições a serem observadas para a instalação física de equipamentos e de mobiliários urbanos”. Tal posicionamento não se sustenta juridicamente.

A propositura não pretende regular os mobiliários urbanos. Seu intuito é, simplesmente, combater ações flagrantemente excludentes da população em situação de rua, materializadas em técnicas de arquitetura hostil absolutamente incompatíveis com preceitos constitucionais pertinentes à tutela dos direitos humanos e à garantia da sadia qualidade de vida nas cidades.

É preciso lembrar que o respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos não tem espaço para flexibilizações. Diante das mazelas sociais enfrentadas por nossa sociedade, espaços públicos excludentes reforçam preconceitos e estereótipos que confundem pobreza com criminalidade, tratando de forma individualizada, superficial e violenta problemas que são estruturais: a falta de renda, emprego e moradia. Assim, pretender manter livre a adoção da arquitetura hostil pelo Poder Público significa, em última análise, incentivar a instalação de espaços públicos excludentes em nossas cidades.

Para dizer o mínimo, é cruel que o mesmo Estado deficiente em políticas públicas que evitem o crescimento da população em situação de rua, atendam suas necessidades e promovam a sua saída digna das ruas, também seja aquele que aceita e adota técnicas de arquitetura que afastam daqueles que já perderam quase tudo aquilo que integra o direito à dignidade (artigo 1º, III, da Constituição Federal [CF]) a possibilidade de se abrigarem em praças, jardins, calçadas e viadutos.

Nesse sentido, o veto fecha os olhos à falha do Estado no cumprimento de seu papel e, ainda, joga contra o objetivo fundamental de nossa República de erradicação da pobreza e da marginalização (CF, artigo 3º, III). E, como se não bastasse, promove uma cidade que exclui seus habitantes, em especial aqueles mais vulneráveis, em contrariedade com os objetivos constitucionais da política urbana executada pelo Poder Público, quais sejam, o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes (CF, artigo 182, caput). Aliado a isso, como prescreve o artigo 225 de nossa Constituição, todos têm direito ao meio ambiente (urbano) ecologicamente equilibrado, bem como de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Vale destacar que, ainda que invisibilizadas pelas políticas públicas ineficientes, as pessoas em situação de rua não são invisíveis. Tentar impedi-las de utilizar o espaço público para passar a noite ou o dia e abrigar-se do frio e da chuva não livrará o Poder Público de sua responsabilidade pela deficiência no atendimento desses cidadãos, tampouco removerá da sociedade o incômodo causado pela visão do sofrimento e vulnerabilidade a que estão sujeitos.

Em sua gênese, portanto, as técnicas de arquitetura hostil utilizadas pelo Estado, defendidas pelo veto presidencial, ferem direitos fundamentais da pessoa humana e não se coadunam com a política urbana que a Constituição Federal consagrou e que o Estatuto da Cidade estabeleceu como horizonte.

O Estatuto da Cidade regulamenta os artigos referentes à política urbana no âmbito federal (artigos 182 e 183 da CF) e, no artigo 2º, estabelece o direito às cidades sustentáveis, nos seguintes termos: “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.

No âmbito internacional, é importante mencionar a Nova Agenda Urbana e as metas definidas pelos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Com relação às cidades, a expectativa é a promoção de cidades e assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis (ODS 11), com a garantia do acesso de todos à habitação segura, adequada e a preço acessível, aos serviços básicos e à urbanização de favelas (Meta 11.1)

É preciso humanizar as cidades. E, desse processo, também faz parte o acolhimento de pessoas mais pobres e em situação de rua. A ausência de políticas de assistência eficazes não pode autorizar o Poder Público a desumanizar ainda mais o uso da cidade pela adoção de ações ainda mais excludentes.

Em 30 de dezembro de 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio do Conselho de Direitos Humanos, aprovou o relatório da Relatoria Especial sobre Moradia Adequada. Nele, são feitas as seguintes recomendações aos Estados:

  1. que se comprometam com a eliminação da situação de rua até 2030, na medida do possível, em respeito aos direitos humanos internacionais e em conformidade com a Meta 11.1 dos ODS.
  2. que preparem e apliquem, imediatamente, estratégias baseadas nos direitos para prevenir e eliminar a situação de rua, tendo por base objetivos e prazos mensuráveis; a colaboração dos interessados; a referência expressa ao direito internacional dos direitos humanos, dentre eles a moradia adequada e a não discriminação; e a implementação de mecanismos de controle, avaliação e denúncia contra eventuais violações de direitos humanos, incluindo a incapacidade dos Estados de aplicar adequadamente as estratégias pactuadas e necessárias.
  3. especificamente em relação à população em situação de rua, que envolvam diversos setores, atribuindo e coordenando claramente as responsabilidades de todos os níveis de governo, abordando as causas estruturais que levam as pessoas à situação de rua, incluindo as que são específicas das necessidades dos grupos marginalizados ou vulneráveis.

Fica, portanto, evidente, que o PL aqui em debate vai ao encontro da Nova Agenda Urbana e dos pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, sendo parte importante de um processo mais amplo de endereçamento dos problemas enfrentados pela população em situação de rua.

Por essas considerações, compreendemos que o Estado Brasileiro e toda sociedade e órgãos de proteção dos direitos devam dar interpretação das normas internas e internacionais e das recomendações do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos – do qual o Brasil é signatário – para que o veto presidencial ao PL 488/2021 seja revisto pelo Congresso Nacional, permitindo, com isso, que a Lei aprovada na sua íntegra entre em vigor e tenha eficácia como norma de direito público, em defesa da dignidade da população em situação de rua e do direito à cidade para todos e todas.

 

Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seção São Paulo (CDH-OAB SP)

Comissão de Direito Urbanístico da OAB SP