Em nota, Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente demonstra discordância em relação ao enunciado publicado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados autorizando as hipóteses legais dos artigos 7 e 11 da LGPD, que não explicita as contradições do uso das bases legais do legítimo interesse, proteção do crédito e execução do contrato em relação à proteção constitucional a que fazem jus os indivíduos com menos de 18 anos
A Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – da Ordem dos Advogados do Brasil seção São Paulo (OAB SP) -, por meio de seu Grupo de Trabalho em Infância e Dados, vem a público manifestar sua discordância e preocupação em relação ao enunciado publicado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) no dia 22 de maio de 2023, o qual autoriza as hipóteses legais dos artigos 7 e 11 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para justificar o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes e não explicita as contradições do uso das bases legais do legítimo interesse, proteção do crédito e execução do contrato em relação à proteção constitucional a que fazem jus os indivíduos com menos de 18 anos.
Durante o período de recepção de contribuições à tomada de subsídios que antecedeu a publicação do enunciado, nota-se que, apesar do esforço da Autoridade para se permeabilizar às diferentes concepções sobre o tema, poucos profissionais especialistas em infância e adolescência foram ouvidos. É notável, inclusive, a ausência de diálogo e oitiva de profissionais de fora do campo da advocacia, como psicólogos, pediatras e educadores, cujos conhecimentos são fundamentais para que se atinja a proteção integral de crianças e adolescentes, pessoas em fase de desenvolvimento biopsíquico e social, em relação a quem violações a direitos – como a proteção de dados pessoais – podem gerar impactos por toda vida.
Pode ser por isso que o enunciado publicado pela ANPD chancelou uma interpretação da LGPD menos protetiva ao interesse da criança, e, portanto, contrária às balizas trazidas pelo Comentário Geral 14 do Comitê dos Direitos da Criança – da Organização das Nações Unidas (ONU) -, o qual detalha o conceito do melhor interesse e é expresso ao determinar que ele impõe o dever de Estados optarem pela interpretação mais protetiva à criança e ao adolescente diante de dispositivos legais em aberto. Adicionalmente, a Autoridade deixou de apresentar qualquer tipo de justificativa, avaliação ou estudo técnico que chancele seu enunciado e indique como ele atende ao melhor interesse da criança e do adolescente, também como exige o mesmo Comentário Geral 14.
Em especial, é possível perceber a incompatibilidade do enunciado publicado pela Autoridade com a interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, que eleva a proteção à infância e à adolescência ao grau de absoluta prioridade, quando permite o tratamento de dados de crianças e adolescentes sob a justificativa do legítimo interesse do controlador ou de terceiro, proteção ao crédito e execução de contrato do qual seja parte o titular, ignora vigência ao amplo arcabouço normativo que garante tutela especialíssima às infâncias e adolescências.
A incompatibilidade do melhor interesse da criança e do adolescente consagrado no caput do artigo 14 da LGPD como requisito primordial para uso de seus dados com a base legal do legítimo interesse é notória. Tal base legal, por definição, busca privilegiar os interesses do controlador ou de terceiros em detrimento daqueles do titular, enquanto o melhor interesse, novamente nos termos do Comentário Geral 14 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, determina que, em potencial situação de conflito, deve sempre prevalecer o resguardo à criança e ao adolescente. Já no caso da hipótese legal da proteção ao crédito, a possibilidade de uso revela-se problemática diante do interesse evidentemente comercial do agente de tratamento, o que igualmente não pode se sobrepor ao direito fundamental do titular que seja criança ou adolescente.
Entende esta Comissão que a interpretação da LGPD compatível com os princípios e regras constitucionais e legais que protegem crianças e adolescentes seria aquela que limita as hipóteses de tratamento de seus dados às arroladas no artigo 11 da Lei. Ainda que não fosse essa a interpretação legal feita pela ANPD, entretanto, entende-se que a ausência da publicação concomitantemente ao enunciado de orientações específicas aos agentes de tratamento sobre como proteger o melhor interesse de crianças e adolescentes e sobre medidas de mitigação de riscos, como têm feito outras autoridades ao redor do mundo1, vai na contramão da proteção integral desses indivíduos.
Chama atenção, também, o descompasso entre a proposição de avaliar casos concretos, que intensificará capacidade de investigação e análise de ilícitos de dados com base no legítimo interesse, e o pouco investimento de recursos na agenda mais ampla de proteção de dados de crianças e adolescentes, da perspectiva da priorização estratégica e estrutura sancionatória com eficácia e contenção de abusos na exploração comercial movida a dados.
Nesse sentido, manifesta esta Comissão sua preocupação em relação ao enunciado aprovado e alerta para os riscos que ele apresenta a crianças e adolescentes, recomendando sua pronta revisão por parte da ANPD.
São Paulo, junho de 2023.
Isabella Henriques
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB SP
Marina Meira
Rafael Zanatta
Membros da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e coordenadores do Grupo de Trabalho em Infância e Dados
João Francisco de Aguiar
Karolyne Utomi
Maraísa Cezarino
Thaís Rugolo
Membros da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Grupo de Trabalho em Infância e Dados
¹Destaca-se, nesse sentido, o trabalho realizado pelo Information Commissioner’s Office, do Reino Unido, que aprovou recentemente o Age Appropriate Design Code e publicou em seu sítio eletrônico diversos recursos orientativos, como o Best Interests Framework.