O Superior Tribunal Eleitoral (TSE) confirmou que o Estado e a Religião foram apartados pela Constituição republicana de 1891 – e qualquer tentativa daquele de imiscuir-se em assuntos religiosos infringe o artigo 19 da Carta Magna que veda ao poder público, entre outras iniciativas espúrias, embaraçar (o termo vem de 1891) o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas. E o tribunal ainda se dobrou, em rara abdicação legislatória, ao artigo 5º, inciso XXXIX, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina…”
O reconhecimento indireto dessas verdades evidentes por si mesmas foi feito quando o plenário do TSE recusou proposta do ministro Edson Fachin de conceber um instituto jurídico que identificaria o abuso do poder religioso. A nova infração eleitoral alcançaria, em exemplo hipotético, candidatos ou ministros religiosos que se valessem da fé para influenciar se não coagir os fiéis – prática recorrente nos templos e na propaganda eleitoral.
Eis um episódio raro de poder que se autolimita, pois a carruagem que anda em nossa estrada institucional segue abarrotada de novas normas cuja promulgação não estava na alçada dos cocheiros. Volta e meia, tanto o TSE como a Justiça do Trabalho ou o Conselho Nacional de Justiça, além de órgãos do Executivo, a exemplo dos tributários e ambientais, “legislam” em aberta usurpação das atribuições do poder competente para fazê-lo, que está afeto, como diz o próprio nome, ao Legislativo. Instruções, portarias, resoluções e interpretações que em rigor são revisões antípodas de textos legais assoberbam o ordenamento jurídico legítimo, promulgado pelos legisladores. Criado em 1932, o TSE é uma fecunda usina de “leis”: já editou quase 24 mil resoluções – uma das últimas, a de n.º 23.609/2019, com aparência e linguajar de lei, “dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos para as eleições.”
A pretensão de criar um tipo de crime na legislação eleitoral foi barrada em virtude da clamorosa evidência de que tal achega dependeria de lei, e não de acórdão de tribunal. Os casos tipificados como abusos nas eleições, de poder econômico ou político constam da Constituição (§ 9.º do Art. 14) e das leis – ordinária n.º 9504/1997 e complementares de Inelegibilidades (n.º 64/1990) e da Ficha Limpa (n.º 135/2010) – e demandam induvidosa e ampla comprovação. Para punir suposto abuso religioso, o primeiro problema é precisamente a prova, como deixou claro o julgamento do processo que motivou a proposta do ministro Fachin. O tribunal apreciava denúncia contra uma pastora evangélica que supostamente se elegeu vereadora usando sua ascendência religiosa para obter o voto dos prosélitos – mas foi absolvida pelo TSE, inclusive com o voto de Fachin.
A corrente repressora argumenta que o assunto não está na órbita da liberdade de religião, mas no conflito entre a pregação dos ministros em suas igrejas e o direito soberano e secreto do voto dos fiéis. É pleito inconcluso. Seria preciso comprovar, por hipótese, um constrangimento inescapável, como ameaça de excomunhão ou de punição eterna caso a coação não fosse acatada na urna. Aponta-se, ainda, uma excessiva religiosidade eleitoral, tecida como projeto político que extrapolaria o exercício da fé para amealhar poder teocrático no Estado laico – e citam-se situações que indicariam sim abuso do poder econômico, como o emprego maciço dos recursos materiais e até de financiamento indireto de igrejas em benefício de seus candidatos, tangendo o rebanho, como coronéis da fé, para um voto que, se antes era chamado de cabresto, hoje pode ser dito voto da fé. Por muito menos que isso, o TSE cassou em 2002 o mandato do senador João Capibaribe, sob a acusação de comprar dois votos por R$ 26.
Ainda que tal quadro mereça reflexão, a criminalização genérica da influência religiosa nas eleições abriria a caixa de Pandora para a livre expansão de outros males – como a incriminação de editoriais e reportagens da imprensa, campanhas corporativas em favor de candidatos das guildas de toda ordem e associações de negócios que indicam candidatos. Qualquer apoio desses grupos, e até manifestação de influente autoridade (“o presidente, o governador, o senador apoia o candidato tal…”) poderia dar margem a Investigação Judicial Eleitoral ou Impugnação de Mandato Eletivo, ao fundamento de “abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” citado na Constituição. Sem falar na atuação do próprio Judiciário, quando (in) diretamente interfere nas eleições vazando informações ou proferindo decisões na antevéspera do pleito, a prejudicar potenciais candidatos. Isso é muito evidenciado em eleições municipais, como as que agora se avizinham.
A Lei n.º 9.504/1997 já proíbe a “veiculação de material de propaganda eleitoral” nos templos, como, por sinal, em todos os “bens de uso comum” – e deveria ser aplicada. Fora disso, a questão está mais para a ética que para a lei. Em outras palavras, é assunto de Deus e não de César.
*Ricardo Toledo Santos Filho é vice-presidente da Seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil