A OAB SP, por meio das Comissões de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, de Direitos Humanos, de Política Criminal e Penitenciária e da Mulher Advogada vêm manifestar completo repúdio à recente notícia, veiculada em reportagem do The Intercept Brasil, de que uma criança de 11 anos, grávida após ter sido vítima de estupro, teria tido o seu direito ao aborto legal inviabilizado por parte de profissionais da área médica, pelo Ministério Público e Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, tendo sido sido revitimizada, em flagrante afronta à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ao Código Penal e à Lei da Escuta Protegida.
Nesse sentido, relevante frisar que o Código Penal estipula, no seu artigo 128 que não se pune o aborto no caso de gravidez resultante de estupro:
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Abordo no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Mas não é só. A Lei 13.431/17 (Lei da Escuta Protegida) garante o direito da criança vítima de violência sexual não ser revitimizada durante a tramitação de ação judicial, para que a violência que sofreu não se some a uma nova, dessa vez, institucional, na medida em que perguntas e conversas sobre o ocorrido, que não sejam realizadas por profissionais especializados, podem agravar a situação da vítima, deixando-lhe ainda mais traumas e marcas para toda a vida. De acordo com a lei:
Art. 2º A criança e o adolescente gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas a proteção integral e as oportunidades e facilidades para viver sem violência e preservar sua saúde física e mental e seu desenvolvimento moral, intelectual e social, e gozam de direitos específicos à sua condição de vítima ou testemunha.
Art. 5º A aplicação desta Lei, sem prejuízo dos princípios estabelecidos nas demais normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente, terá como base, entre outros, os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente a:
I – receber prioridade absoluta e ter considerada a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;
II – receber tratamento digno e abrangente;
III – ter a intimidade e as condições pessoais protegidas quando vítima ou testemunha de violência;
IV – ser protegido contra qualquer tipo de discriminação, independentemente de classe, sexo, raça, etnia, renda, cultura, nível educacional, idade, religião, nacionalidade, procedência regional, regularidade migratória, deficiência ou qualquer outra condição sua, de seus pais ou de seus representantes legais;
V – receber informação adequada à sua etapa de desenvolvimento sobre direitos, inclusive sociais, serviços disponíveis, representação jurídica, medidas de proteção, reparação de danos e qualquer procedimento a que seja submetido;
VI – ser ouvido e expressar seus desejos e opiniões, assim como permanecer em silêncio;
VII – receber assistência qualificada jurídica e psicossocial especializada, que facilite a sua participação e o resguarde contra comportamento inadequado adotado pelos demais órgãos atuantes no processo;
VIII – ser resguardado e protegido de sofrimento, com direito a apoio, planejamento de sua participação, prioridade na tramitação do processo, celeridade processual, idoneidade do atendimento e limitação das intervenções;
IX – ser ouvido em horário que lhe for mais adequado e conveniente, sempre que possível;
X – ter segurança, com avaliação contínua sobre possibilidades de intimidação, ameaça e outras formas de violência;
XI – ser assistido por profissional capacitado e conhecer os profissionais que participam dos procedimentos de escuta especializada e depoimento especial;
XII – ser reparado quando seus direitos forem violados;
XIII – conviver em família e em comunidade;
XIV – ter as informações prestadas tratadas confidencialmente, sendo vedada a utilização ou o repasse a terceiro das declarações feitas pela criança e pelo adolescente vítima, salvo para os fins de assistência à saúde e de persecução penal;
XV – prestar declarações em formato adaptado à criança e ao adolescente com deficiência ou em idioma diverso do português.
Parágrafo único. O planejamento referido no inciso VIII, no caso de depoimento especial, será realizado entre os profissionais especializados e o juízo. (grifos inseridos)
Mais do que uma manifestação em relação, exclusivamente, ao caso noticiado nesta semana, a presente Nota Pública repudia a não aplicação das normas legais do país que garantem, pelo artigo 227 da Constituição Federal, a absoluta prioridade dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, como dever de todos, do Estado, da sociedade e das famílias, inclusive em situações envolvendo violência perpetrada contra essas pessoas que vivenciam um período peculiar de desenvolvimento biopsicossocial e, por isso, são hipervulneráveis.
Daí ser responsabilidade de todos apontar para a inadmissibilidade das condutas noticiadas, que iluminam a violência institucional perpetrada contra uma criança. Violência institucional tal que, ademais, está tipificada como crime pela Lei 14.321/2022:
Art. 15-A. Submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade:
I – a situação de violência; ou
II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização: (Incluído pela Lei nº 14.321, de 2022)
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o agente público permitir que terceiro intimide a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena aumentada de 2/3 (dois terços).
§ 2º Se o agente público intimidar a vítima de crimes violentos, gerando indevida revitimização, aplica-se a pena em dobro.
É por tudo isso que as Comissões signatárias manifestam-se no sentido de que os fatos noticiados sejam investigados, os agentes públicos devidamente responsabilizados e a criança efetiva e integralmente protegida. Para além disso, reforça-se a necessidade de plena implementação da Lei da Escuta Especializada, inclusive no que diz respeito à capacitação interdisciplinar e continuada dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, para que casos como o presente não tenham lugar e que o melhor interesse da criança esteja na base das decisões do sistema de justiça brasileiro.
Isabella Henriques
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
Marina Dias
Presidente da Comissão de Política Criminal e Penitenciária
Priscila Akemi Beltrame
Vice-Presidente da Comissão de Direitos Humanos
Isabela Castro de Castro
Presidente da Comissão da Mulher Advogada