Um misto de revolta e tristeza indignou a toda a sociedade nesse 03.11.2020, ocasião em que nos deparamos com o processo judicial de Mariana Ferrer, que após ser vítima de violência sexual, é revitimizada pelo sistema de justiça, que em lugar de garantir seus direitos e sua dignidade, comete nova violência, dessa vez, a institucional.
O grave episódio com o qual nos deparamos, em verdade nos apresenta um cenário posto da naturalização da violência promovida contra as mulheres que, numa perspectiva histórica, desde o período colonial, reconhece seus corpos como território livre, legítimo destinado como o locus perfeito das violações.
O sistema de justiça em verdade atua como um espelho a refletir as desigualdades estruturais presentes na sociedade, e entende que transferir e culpabilizar as vítimas é preço a ser pago por visibilizar as violações que sofreram.
Não se espera uma caça às bruxas, – ou no caso, em um paralelo histórico ao desempenho dos papéis: uma caça aos inquisidores. Trata-se de olhar para o processo como deve ser orientado, pela lógica da responsabilização.
As posturas dos operadores do direito que se encontravam nessa audiência, comportavam reprovabilidade de suas condutas pela ausência de ética, ora pela omissão, ora pelo expresso desrespeito e crueldade.
O sistema de justiça que opera nessa lógica desestimula que mulheres a acessem, procurem ajuda, denunciem, pois sabem que não serão acolhidas, e para além, que poderão sofrer nova violência.
É temerário que no caso em comento as teses defensivas tenham sido de ataque e humilhação à mulher, e não através das garantias penais previstas no ordenamento: vale tudo para defender uma violência perpetrada contra uma mulher, sobretudo induzindo uma construção de um estereótipo comportamental que a sociedade patriarcal repudia. A vítima na prática que precisa se defender. Nesse caso, implorar para cessar as agressões durante uma audiência judicial.
É igualmente temerário que promotores e juízes formulem sua convicção a partir de uma leitura moralista e estigmatizante sobre o que se espera de uma mulher numa situação de violência. Como se houvesse um pacto para a tolerância das violências praticadas por homens contra as mulheres com fito de justificá-las, atenuá-las, descaracterizá-las.
E mediante consternação essa nota é feita, para repudiar aquilo que não deveria ser objeto de relativização; a advocacia se insurge contra qualquer movimento que ignore as violências sistemáticas de ordem estrutural que se reproduzem sobretudo nas instituições, em nome da lei e da ordem. Toda solidariedade à Mariana Ferrer. Toda solidariedade às mulheres que passaram e passam por similar vilipêndio. Toda a solidariedade às mulheres negras que sofrem no sistema de justiça, além da violência de gênero, o racismo. Toda solidariedade a quem sofre violências de ordem de classe e sexualidade também. Nossa atuação é por imperativo ético a equidade, e nossos esforços serão guiados para a sua plena concretização.
Comissões da Mulher Advogada, de Direitos Humanos, Igualdade Racial e de Justiça Restaurativa da OAB SP