O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 31 anos em 2021 – um marco legal sem precedentes dos Direitos Humanos no Brasil. Em 1988, a Constituição Federal trouxe, em seu artigo 227, a garantia às crianças e adolescentes “com absoluta prioridade”, do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Apesar de leis inovadoras, as matérias relacionadas à defesa dos direitos infantojuvenis tratados pelo Poder Judiciário ainda se confundem com as áreas de Direito Penal e de Família, sem, muitas vezes, considerar a sensibilidade que o tema exige. A Advocacia, por sua vez, acaba restringindo sua atuação em atividades como “busca e apreensão de crianças e adolescentes”, termo anacrônico e inapropriado de tratamento – afinal, não estamos diante de objetos e, sim, de sujeitos de direito.
Preocupada com todas essas questões, a Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB SP), propôs uma reformulação completa da tabela de honorários da área.
Em entrevista ao Jornal da Advocacia, Diego Goularte, Thaís Dantas, Denise Auad e Raquel Stefane Costanti – respectivamente, presidente e vice-presidente, e membros da Comissão – falaram sobre o tema em matérias do Direito Infantojuvenil, que foi elaborada para valorizar a atuação nesse setor, que requer especialização para tratar de assuntos tão sensíveis concernentes ao respeito e à integridade de crianças e adolescentes.
JA: Como surgiu o projeto para reformulação da tabela de honorários?
Diego Goularte: As atividades em matérias infantojuvenis não recebiam um tratamento específico na tabela de honorários da OAB, e eram confundidas com a área do Direito Penal e de Família.
Thaís Dantas: O diagnóstico era claro e a situação, grave; afinal, mesmo tendo por base de atuação da advocacia – e da sociedade como um todo – uma Constituição vigente desde 1988, que assegura os direitos de crianças e adolescentes com absoluta prioridade, até o momento, não se olha para essa temática com a devida atenção. Era, então, preciso dar esse primeiro passo: organizar os procedimentos advocatícios relacionados à infância e adolescência, para dar visibilidade à temática e, ao mesmo tempo, mostrar às e aos profissionais as possibilidades desse campo de atuação.
Denise Auad: É interessante ressaltar que esse projeto surgiu de um pleito de um curso que coordenei junto com a professora doutora Eunice Prudente, que foi diretora da Escola Superior da Advocacia da Secional (ESA OAB SP). À época, em 2012, oferecemos um curso preparatório para pessoas que queriam advogar junto ao convênio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP). Nessa formação, percebemos que não havia valorização dos honorários referentes à infância; sequer uma tabela própria, e os valores que existiam estavam dentro de Direito da Família ou de Direito Penal, sendo valores mais baixos. Essa situação gritante chegava a ser ofensiva e contrária à Constituição Federal, que garante prioridade absoluta à criança e ao adolescente.
Com a adesão dos alunos, foi feito, naquela época, um abaixo-assinado entregue à diretoria da OAB SP. Mais tarde, conversando com Thaís Dantas, atual vice-presidente da Comissão, discutimos a necessidade de uma nova tabela. Quando ela integrou a Comissão, em 2019, veio o convite para fazer parte, justamente por conta desse projeto.
Nossa grande dificuldade era colocar isso no papel. Foi então que encontramos a Raquel Stefane Costanti e outros membros, como a Bárbara Fraga Maresch e a Michele Yu Wen Tjioe, que deram energia para viabilizar a proposta.
O processo de pesquisa e organização foi impactante, em especial, quando nos deparamos com termos que envolviam o processo de infância, como “busca e apreensão de menores”. Como pode existir esse termo em uma tabela da OAB, depois de mais de 30 anos de ECA? Essa reformulação, mais que essencial, foi uma construção coletiva, desde o nome da tabela, com um termo mais abrangente – “tutela dos Direitos da Criança e do Adolescente” – para esse universo que envolve família, ato infracional, trabalho, direitos difusos. É um mundo próprio, que precisava estar à parte dessas outras matérias.
JA: Como foram os trabalhos para desenvolvimento de uma tabela específica?
Raquel S. Costanti: O projeto já estava em andamento e resolvi abraçar, porque nada mais certo do que haver a valorização da Advocacia por meio da tabela de honorários, pois abre uma porta para advogados valorizarem o tema da infância e, assim, buscarem se capacitar para atuar com mais preparo.
Fiz um levantamento nacional de todas as tabelas da OAB para verificar quais tinham atividades específicas e quais tratavam o tema de maneira generalizada. As que tinham referências, abordavam tão somente os Direitos da Criança e do Adolescente por meio do ECA e o valor estipulado, mas sabemos que essa área está ramificada em todos os limites do Direito.
Foi feita uma parceria muito importante com a Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente da OAB SC, por meio de seu presidente, Ênio Gentil. Thaís Dantas foi responsável pelo nosso contato inicial com ele, em meados de 2020. Começamos a nos reunir de forma remota para o desenvolvimento dessa tabela ampla.
Ele desenvolveu uma tabela que foi apresentada em Santa Catarina e, em conjunto, desenvolvemos uma tabela para acoplar todos os atos possíveis que envolvem os Direitos da Criança e do Adolescente com atos já existentes da tabela.
Fizemos essa comparação e planificação dos atos e, com base nos valores, majoramos em 10%, pois entendemos que é muito importante a valorização para a especificidade da matéria. Além disso, essa valorização reflete o mandamento constitucional do art. 227 da Constituição Federal, o qual estabelece que crianças e adolescentes devem serem tratados com prioridade absoluta.
Nosso objetivo é seguir com a parceria, a fim de apresentar a proposta ao Conselho Federal da OAB. A iniciativa abre precedentes para que tenhamos uma tabela única à Advocacia de todo o país.
Diego Goularte: Podemos dizer que, hoje, a tabela da OAB SP é a mais justa, com toda amplitude que tem, e a mais completa de todas as secionais. Além da valorização da Advocacia, a nova tabela fomenta que os profissionais adquiram uma especialização, um conhecimento mais aprofundado da matéria e, com isso, estejam melhor preparados para atuar na proteção da criança e do adolescente. É, também, o início para discutirmos a valorização dos honorários do convênio da Ordem paulista com a DPESP.
A nova tabela é um marco muito importante do trabalho realizado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/SP.
JA: Como a nova tabela promove a valorização da Advocacia atuante da área?
Denise Auad: Os Direitos da Criança e do Adolescente têm prioridade absoluta na Constituição e havia uma discrepância muito grande com a concretude do artigo 227. As atividades em matéria infantojuvenil eram vistas de uma forma muito ruim nas tabelas que existiam. Isso é um contrassenso. Por isso que lutamos para majorar o valor dos honorários, que deve ser maior que todos os outros, pois o trabalho com a infância é delicado, exige maior especialização e dedicação. Um erro cometido com uma criança pode se perpetuar pela vida.
Entendemos que esse conhecimento vai permitir que profissionais se dediquem a estudar mais o tema, para estarem mais preparados para o atendimento adequado. As questões de infância são muito delicadas, sendo que a maior parte delas envolvem a própria dignidade e a efetivação de direitos fundamentais. É por isso que, no convênio com a Defensoria, só existem dois cursos preparatórios. Você pode pedir para ser conveniado e já começar a atuar, menos na Infância e no Júri, em que é preciso fazer um curso preparatório, pela importância e delicadeza do assunto.
Thaís Dantas: Acreditamos, também, que a nova tabela da seccional de São Paulo é um passo importante para a projeção nacional desse tema. É fundamental que todos os estados e o Conselho Federal estejam atentos e mobilizados, valorizando profissionais que trabalham com direitos de crianças e adolescentes. A partir disso, movimentamos a área, para que as faculdades de Direito ofereçam esse conteúdo com mais profundidade, para que mais acadêmicos enxerguem a possibilidade de construir uma carreira com esse foco, por exemplo.
JA: Qual o impacto dessas mudanças na defesa de crianças e adolescentes?
Denise Auad: O Direito da Criança e do Adolescente não pode ser confundido com Direito de Família e, muito menos, com Direito Penal. Essa era uma das nossas grandes lutas, por exemplo, para que ato infracional fosse tratado com uma visão de proteção integral, de recuperação, aliado aos princípios do ECA em todas as suas dimensões; trazer todas esses pontos para a ótica da infância e não o inverso, como existia e que exibia aberrações.
Também estamos lutando – membros da Comissão, em conjunto com o Dr. Ênio, da OABSC, que desenvolve um trabalho maravilhoso – para destacar o advogado da criança como uma figura específica da Advocacia.
Diego Goularte: Além dos defensores do pai e da mãe, em uma eventual disputa, lutamos para que a criança tenha advogado próprio, para a garantia de seus interesses. Seria, mais ou menos, como a figura do curador – específico para a criança -, em relação às discussões entre os pais em situações de disputas judiciais.
Thaís Dantas: Desde já, temos como efeito a maior visibilidade às pautas de infância e adolescência na advocacia; ademais, essa valorização tende a movimentar o setor com mais oferta de cursos na área e com a atração de mais profissionais qualificados. Sabemos que esse é um avanço relevante e que precisa ser celebrado; ainda assim, estamos também cientes que são grandes os desafios para tirar o conceito de absoluta prioridade do papel e trazer para a prática – o que envolve que políticas, orçamento e serviço público priorizem crianças e adolescentes. O que é importante que tenhamos em mente, sempre, é que enquanto advogadas e operadores do Direito, devemos fortalecer a compreensão e a ação de que estamos diante de sujeitos com vez e voz e que, por isso, o sistema de justiça precisa ser amigável, sensível e acessível a crianças e adolescentes.
A reformulação da tabela de honorários da Advocacia Infantojuvenil contou com a participação direta dos membros da Comissão, sendo eles:
- Ana Torezan;
- Bárbara Fraga Maresch;
- Celia Regina de Souza;
- Denise Auad;
- Diego Goularte;
- Enio Gentil Vieira Júnior (OAB SC);
- Ingrid Sora;
- Michele Tjioe;
- Michelle Asato;
- Patricia Helena Massa;
- Priscila Kuhl Zoghbi;
- Raquel Stefane Costanti;
- Thaís Nascimento Dantas;
- Thiago Henrique dos Santos Oliveira.