O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado hoje, 29 agosto, marca a data do 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), ocorrido nesse mesmo dia, em 1996. Nesses 25 anos, a data tem o objetivo de celebrar os avanços e conquistas, como também lembrar dos desafios que ainda precisam ser superados, para garantir a diversidade e o acesso de todas e todos aos seus direitos sem discriminação de gênero ou de orientação sexual, como reitera Marina Ganzarolli, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Igualdade de Gênero da OAB SP.
Marina é a primeira lésbica a ocupar a presidência da Comissão, bem como uma cadeira no Conselho Estadual da Secional de São Paulo, sendo a mais nova nessa posição. O Jornal da Advocacia conversou com Marina que nos contou um pouco sobre a história do Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, dos avanços conquistados e dos desafios a serem superados, sobre sua trajetória profissional de intensa participação na luta pelos direitos das mulheres, da população LBTQIA+ e os trabalhos de sua gestão a frente da Comissão.
1 – Como surgiu e qual a importância do Dia Nacional da Visibilidade Lésbica?
O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, comemorado em 29 agosto, marca a data em que ocorreu o 1º Seminário Nacional de Lésbicas, o Senale, que depois passou a englobar as mulheres bissexuais e passou a se chamar Senalasbi, aconteceu neste dia em 1996. Outra data importante, é o Dia Nacional do Orgulho Lésbico, comemorado em 19 de agosto, que também marca a data de uma revolta, semelhante àquela que aconteceu no levante de Stonewall, nos Estados Unidos, aqui em São Paulo, em 19 de agosto de 1983, em um bar chamado Ferro’s Bar, e que foi protagonizado por mulheres lésbicas e apoiado por grupos feministas contra proibição de circulação de uma publicação feita por mulheres lésbicas, para mulheres lésbicas, de um dos primeiros coletivos de mulheres lésbicas do Brasil, o Galf. A importância dessas datas, assim como todo o mês da visibilidade lésbica é precisamente celebrar, marcar as conquistas, os avanços que conquistamos até aqui, enquanto mulheres, enquanto mulheres lesbicas e também e para lembrar o quanto ainda temos para caminhar. É fundamental para dar visibilidade aos desafios que ainda precisamos superar, para garantir a plena equidade para todas, todos e todes, a diversidade e a inclusão, bem como o Estado Democrático de Direito, com acesso de todas e todos aos seus direitos, sem discriminação de gênero ou de orientação sexual.
Nós mulheres somos 52% da população brasileira e não ocupamos nem 30% das cadeiras do Congresso Nacional. Somos também de, acordo com o dossiê do Lesbocídio, estudo realizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado pela professora Maria Clara Dias, vítimas de feminicídio, por motivação lesbofóbica, crime que cresceu 237%, que de 2014 a 2017, sendo a maioria das vítimas – 57% – de mulheres lésbicas negras.. Sofremos ainda, assim como todas as mulheres brasileiras – mulheres heterossexuais bissexuais -, com a violência sexual, e duplamente, a partir do recorte da orientação, do estupro corretivo, aquele cometido contra a mulher lésbica com a intenção, a torpeza de “corrigir um comportamento sexual desviante”. Esse crime foi reconhecido em 2019, um avanço importante, dado pela lei de importunação sexual, que trouxe diversas outras alterações, entre elas a qualificadora do estupro corretivo, este cometido contra mulheres lésbicas. É um marco legal importante, uma conquista, resultado da articulação da opinião pública, ONGs, da advocacia da diversidade, das mulheres lésbicas advogadas, que atuam em defesa dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+, conquistando esse reconhecimento no nosso Código Penal. Mas ainda sabemos que das dificuldades no enfrentamento da violência sexual.
Apesar desse reconhecimento no Código Penal, ainda temos poucas denúncias, ainda é um crime bastante subnotificado. É preciso dar visibilidade àquilo que ainda é inviabilizado: o movimento em defesa dos direitos dessa população, o silenciamento das mulheres. Por isso a necessidade de seguirmos dando destaque e relevância a essas datas, para comemorar os avanços e lembrarmos os desafios que temos que enfrentar para alcançar a equidade de todas, todos e todes.
2 – Como é ser a primeira lésbica a presidir a Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB SP, bem como fazer parte do Conselho? Quanto essa representatividade pode mudar a visão da Advocacia sobre o tema?
Primeiro é um privilégio e uma honra ser a primeira mulher lésbica a estar neste lugar, mas também um desafio. Assim como a palavra mulher não descreve todas as mulheres da sociedade brasileira, paulista ou da Advocacia, eu também não consigo representar todas as mulheres lésbicas brasileiras, paulistas ou advogadas. Ao mesmo tempo, acredito que é um marco, um primeiro e importante passo de coragem e inovação da nossa gestão, da gestão do presidente Caio Augusto Silva dos Santos, da nossa diretoria, que abre espaço, abre portas, abre caminhos e o mais importante diálogo, para continuarmos conversando sobre a importância da diversidade e da inclusão em todos os espaços inclusive na advocacia.
É o momento para continuarmos essa conversa e iniciarmos essa jornada por cada vez mais representatividade, mais diversidade e inclusão. Não adianta apenas termos visibilidade, é preciso representatividade, e é isso que essa gestão mostra com inovação e coragem para conquistarmos diversidade dentro e fora do sistema OAB e da Advocacia. Se eu sou a primeira, que eu seja a primeira de muitas: mulheres lésbicas, trans, travestis, negras, deficientes. Enfim, para nós continuarmos e seguir caminhando por mais diversidade e inclusão.
3 – Além de ser a primeira lésbica, você também é uma líder jovem. Como foi sua chegada na OAB SP?
Acredito que sou a mais jovem ou uma das mais jovens do nosso Conselho Secional. Recebi o convite da diretoria para assumir a posição, na pessoa do vice-presidente Ricardo Toledo, para integrar a gestão, enquanto conselheira titular e presidenta da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero. Isso aconteceu a partir da minha trajetória antes de estar junto ao nosso querido sistema OAB. Em 2018, quando estávamos em campanha, eu havia concluído o meu mestrado na área do direito e gênero na Universidade de São Paulo e já atendia, há mais de 10 anos, em casos de vítimas e sobreviventes de violência doméstica e sexual, mulheres, crianças, adolescentes, e pessoas LGBTQIA+. Dessa trajetória, tanto acadêmica, quanto nos movimentos e organizações de defesa dos direitos das mulheres, em 2016, fundei a Rede Feminista de Juristas, no ano passado trouxe para o Brasil o movimento Me Too contra o assédio sexual.
Enquanto advogada, mas também como empreendedora social na área de defesa dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+, já tinha um grande reconhecimento aqui fora, então tive a honra de receber esse convite da nossa diretoria.
4 – Como a visibilidade das mulheres lésbicas tem evoluído no país nos últimos anos?
O 19 de agosto de 1983, que se transformou em Dia do Orgulho Lésbico, marca a primeira manifestação organizada de mulheres lésbicas no Brasil. A partir desse momento, começamos a olhar, a problematizar e pensar na necessidade, nas especificidades das mulheres dentro e fora da defesa dos direitos LGBTQIA+, como um todo. Esse início se dá na década de 1980, mas de forma muito tímida. A sigla mostra muito isso; antes era GLS, sempre dando primazia ao homem, à parada gay, bares gays. Muitas vezes a gente invibiliza as mulheres. A partir da redemocratização do país e da nossa Constituição Cidadã, de 1988, a gente tem cada vez mais a organização articulada de mulheres lésbicas na defesa dos seus direitos e isso é marcado com a realização dessas conferências nacionais, como essa que marcou o Senale na década de 1990. Nos anos 2000, o que chamamos de terceira onda, começamos a ver cada vez mais jovens mulheres “saindo do armário”, entendendo e assumindo a sua sexualidade, sua orientação sexual mais cedo e tendo acesso a informação por meio das redes sociais, formando mais grupos organizados pensando nas necessidades das mulheres lésbicas, mas ainda são poucos. Essas necessidades específicas continuam sendo muitas. Essa evolução ainda é bastante tímida, mas aos poucos temos caminhado
5 – Quais as principais iniciativas da sua gestão à frente da Comissão?
O que busquei fazer na minha gestão foi abrir a Comissão ao máximo para colaboradores e colaboradoras, para a Advocacia de todas as áreas de conhecimento e de todas as regiões, assim como para acadêmicos, estudantes Lgbts interessados no Direito, ou não, em outras áreas profissionais, como médicos e engenheiros, que também compõem a Comissão como membros consultores. Essa descentralização é importante para a participação ampla e democrática, dando abertura. Sempre tivemos o apoio da nossa diretoria e as coordenações da comissão ficaram muito livres para realizar os projetos. Tivemos projetos de muito êxito ao longo desses dois anos. Creio que um dos mais importantes é a Constituição do Orgulho em que convidamos a Advocacia paulista da diversidade para colorir os artigos da Constituição Cidadã, que dizem respeito à nossa população com as cores da bandeira LGBTQIA+, a bandeira do arco-íris. Fizemos uma campanha para o lançamento da Constituição do Orgulho, que foi premiada com três prêmios: dois ouros e uma prata no festival de criatividade El Ojo, o mais importante da América Latina. Foram milhares de downloads da Constituição do Orgulho. A ideia era levar ao conhecimento todas, todos e todes, da forma mais acessível possível, os nossos direitos constitucionais. O reconhecimento das nossas demandas se deu nos últimos 20 anos por meio do Supremo Tribunal Federal, por meio do reconhecimento jurisprudencia, como a união homoafetiva em 2011, mais recentemente a criminalização da LGTBfobia, em 2019, a possibilidade de retificação do prenome de pessoas trans diretamente em cartório, sem necessidade de intervenção cirúrgica ou de realização de hormonoterapia. Todas essas conquistas foram jurisprudenciais, o que nos faz pensar, muitas vezes, que o STF que criou esse direito, mas na verdade o Supremo não cria direitos, ele interpreta interpreta a nossa Constituição Cidadã, que diz que somos todos e todas iguais em direitos e deveres, independentemente de credo, raça, origem, orientação sexual. Essa campanha buscou dar visibilidade e popularizar a nossa Constituição e aqueles direitos que dizem respeito à nossa população. Esse foi com certeza um projeto exitoso. Este ano, promovemos a realização da nossa maratona do mês do Orgulho na OAB SP, o 4º Congresso Internacional do Direito à Diversidade, maior evento do tipo já realizado na história de todas as Secionais da OAB. Foi durante todo o mês de julho, com painéis abordando diversos temas relacionados ao direito à diversidade. Recebemos o ministro Luís Roberto Barroso, a filósofa Djamila Ribeiro, registrando muitas visualizações todos os dias.
No início da gestão, achei importante popularizar o trabalho da OAB e o trabalho da Advocacia da Diversidade. Quando entrei, a Comissão não tinha sequer conta no Instagram, eu mesma fiz uma conta, que hoje tem mais de 10 mil seguidores, absolutamente orgânicos, um legado que fica para nossa Comissão, para nossa Ordem.
Outros projetos que destacaria, muito importantes, foram os acompanhamentos que fizemos de pessoas em situação de vulnerabilidade, como por exemplo, o caso de uma travesti que precisou de refúgio internacional, em uma situação de violações a seus direitos. Fizemos vários atendimentos de advogadas e advogados que tiveram algum tipo de violação do exercício das suas prerrogativas junto à Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB SP, com o apoio do Leandro Sarcedo e da Ana Carolina Moreira Santos, presidente e vice-presidente, respectivamente, como foi o caso de um advogado travesti que sofreu transfobia em um Juizado Especial Cível, em São Paulo, dando suporte a essa advocacia da diversidade também no exercício das suas prerrogativas profissionais.
Outra ação muito exitosa foi o Poupatrans, parceria com o Vote LGBT, com a Rede Feminista de Juristas, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Sesc 24 de Maio, e a época, por emenda parlamentar, pelo mandato do ex-vereador Daniel Annenberg. O Poupatrans viabilizou a realização, por quatro meses, de atendimento direto à população trans e travesti no Sesc 24 de Maio, para orientação em relação a retificação de prenome, auxílio na emissão das certidões necessárias para realizar a retificação junto ao cartório, dando apoio a centenas de mulheres trans, que estavam em busca do reconhecimento de suas identidades. O projeto acabou virando autônomo e resultou numa cartilha, com conteúdo educativo, sem juridiquês, diretamente voltado para mulheres, trans de como realizar a retificação. Sabemos que essa foi uma conquista no STF, mas que muitas vezes na prática existem uma série de obstáculos sociais e culturais para que essa população consiga acessar essa retificação. Muitas vezes, elas não sabem como emitir certidões. Foi um trabalho muito lindo e resultado da nossa gestão.