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Dilemas éticos na pesquisa e na saúde pautaram o 1º Congresso de Bioética da OAB SP

By 31 de outubro de 2023No Comments
comitê de bioética

Descriminilização do aborto, ética e pesquisa com animais e seres humanos e o papel dos comitês de bioética em hospitais foram tema das palestras do evento

Médicos e advogados se reuniram no 1º Congresso de Bioética da OAB SP – Conflitos em Bioética e suas Soluções, que aconteceu no dia 18 de outubro, na sede da Ordem paulistana.

Palestrantes falaram o dia todo sobre assuntos diversos, como ética em pesquisas científicas, recusa de tratamento, aborto, distanásia, reprodução assistida, inteligência artificial na medicina, entre outros.
Henderson Fürst, presidente da Comissão de Biodireito e Bioética da OAB SP, em meio às exposições, pediu para que todo o conhecimento gerado no Congresso seja levado para a vida real.

“Estamos debatendo todos esses temas aqui do ar condicionado, de cadeiras confortáveis e, enquanto isso, a vida não muda lá fora. Até eu terminar de falar, uma menina de 14 anos terá seu aborto negado em uma unidade de saúde”, exemplifica o presidente da comissão.

Para que isso mude, segundo ele, é preciso expandir o diálogo e reduzir as disputas. “Temos tantos órgãos de regulação do governo, além do poder judiciário, e eles não se falam. Cada um pega um canto da corda e puxa até conseguir ser o dono da narrativa da saúde no Brasil. Tudo é judicializado e não dá mais para ser assim. Essa mensagem precisa ir adiante, precisamos encontrar outros mecanismos que não envolvam uma petição inicial”, defendeu Fürst.

O Congresso foi transmitido pelo canal da OAB SP Cultural, no Youtube. Assista aqui:

Descriminalização do aborto

Para tratar do tema, que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal, a doutora em bioética Camila Vasconcelos, pede que o Brasil saia do silêncio e fale sobre o assunto abertamente. A advogada pondera que fugir do assunto está prejudicando até que a lei já aprovada seja levada à prática.

“Mesmo as mulheres que estão dentro da licitude do abortamento não estão livres do julgamento social. O médico parte do princípio de que a mulher pode estar mentindo que foi abusada, como se fosse simples admitir algo tão desconfortável e constrangedor”, pontua Vasconcelos.

Por todos esses estigmas, a advogada pontua que não adianta descriminalizar o aborto se não houver protocolos adequados para a lei se fazer cumprir.

Genética em pauta

A habilidade de manipular a genética e suas consequências para a humanidade foram tratadas dentro de temas mais específicos, como o da reprodução assistida.

Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito Médico da OAB SP, chamou atenção para discussões que precisam ser feitas sobre casos que já estão acontecendo. Os principais dilemas, em sua visão, são a seleção de embriões, gestação de substituição (barriga de aluguel) e a doação de gametas (óvulos ou espermatozoides).

“No Brasil não é permitido, mas lá fora é possível escolher cor de pele e dos olhos do bebê. Há a possibilidade, ainda, de partimos para a escolha de habilidades, o que pode ser utilizado por interesses econômicos. Precisamos pensar que tipo de sociedade teremos se permitimos esse tipo de interferência”, questiona Hasse.

Leia também: Venda de sêmen e escolha de embriões criam desafios éticos para advocacia

Ao falar de engenharia genética, que engloba temas como clonagem, Ronaldo Piber, advogado, biólogo e mestre em bioética, pede uma reflexão sobre o consentimento desse tipo de manipulação. Como uma pessoa poderá autorizar algo que nem ela entende bem das consequências?

“O que é de fato consentir que seus dados genéticos sejam analisados?”, questiona Piber.

Nesse mesmo raciocínio, a pesquisadora da USP Luiza Pinheiro lembra que os dados de saúde já estão circulando livremente.

“Não só os smartwatches. Hoje há aplicativos de saúde mental, em forma de chatbot, que usam dados de seus usuários para chegar a melhores respostas em um momento de crise de pânico, por exemplo. Quem sabe como esses dados serão, de fato, utilizados? E se houver vazamento”, questiona Pinheiro.

Mesmo com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) não há garantia de que as informações estão seguras. “Quando alguém quer utilizar um serviço, autoriza os termos de uso sempre sem ler ou entender claramente do que se trata”, lembra a pesquisadora.

Pesquisas com humanos e animais

Alexandre de Oliveira, advogado e bioeticista, traçou uma linha do tempo dos abusos cometidos com seres humanos em busca de conhecimento científico ao longo da história até as resoluções e normas que regulam essas regras.

Cita o Sistema formado pela Conep (instância máxima de avaliação ética em protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos) e pelos CEP (Comitês de Ética em Pesquisa), segundo define o Conselho Nacional de Saúde.

“É importante dizer que há pesquisas hoje ocorrendo sem a avaliação desse sistema. Sem isso, arriscamos repetir o que já fizemos no nazismo e até no Brasil”, afirma Oliveira – citando a história do ‘Trem do Doido”, quando o Hospital Colônia, em Barbacena, no início do século XX, levava pessoas consideradas doentes mentais para a morte certa. Seus corpos serviam para pesquisa em faculdades de medicina. O episódio é conhecido como Holocausto Brasileiro.

O advogado Diogo Ramos, mestre em perícias forenses, tratou sobre o consentimento de pessoas recrutadas para a pesquisa e ressaltou que é preciso ter sensibilidade e uma comunicação clara com esses voluntários.

Outro ponto é ter a certeza de quais são os meios, fins e resultados daquele estudo. “Dou como exemplo a lei que incentiva mulheres na política. Ela tem meios e fins justificáveis, mas não dá resultado, porque abre brechas para a fraude. Na pesquisa, é o mesmo, não adianta ter um texto bonito a justificando se ela não trará resultados práticos para a sociedade”, defende o advogado.

Quando se fala em animais, a primeira reflexão é mais profunda. “Por eles não terem o poder de decisão, somos os responsáveis por esses bichos. E essa preocupação não é apenas pelo bem-estar deles, é questão de proteger também o ecossistema e o equilíbrio do planeta”, afirmou o advogado Júlio Marques, especialista em Direito Médico, Saúde e Veterinário e presidente da Comissão de Bioética, Direito Médico e da Saúde da OAB – Osasco.

Para verificar a real necessidade dessas pesquisas, uma das chaves, ainda, é pensar na saúde coletiva de homens e animais, pontua Dallari Júnior, advogado e veterinário.

“A Covid 19 deveria ter trazido esse entendimento para a sociedade. O que acontece lá longe, reflete aqui, o que acontece com os animais chega ao ser humano. Se não discutirmos esses temas, vamos enfrentar problemas sérios de zoonoses. A Leishmaniose já é epidemia em Minas Gerais, e já surgiu a raiva humana”, explicou Júnior.

Recusa do Tratamento e os Comitês de Bioética

Luciana Dadalto, advogada e doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG, ilustrou sua palestra a partir do significado do fim da vida, e do questionamento: “O que é para vocês pior do que a morte”?

A especialista avalia como o artigo 15 do Código Civil deixa questões em aberto. O texto diz que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

“Se eu não posso ser constrangido, qual a dificuldade de entendermos o momento que isso viola a minha dignidade?”, questiona Dadalto. Ela avalia que as normas do Conselho Federal de Medicina vão diretamente contra essa ideia quando exige que o médico faça de tudo para evitar a morte.

“Para o CFM não existe nada pior do que a morte porque ainda há um olhar alicerçado na medicina curativa, quando o profissional de saúde tem o cuidado como função principal”, defende a advogada. “O direito constitucional à vida é um direito a uma vida digna, que é individual e relacionado a biografia de cada um de nós”, conclui Dadalto.

Para lidar com temas como esse, o indicado é que as instituições mantenham Comitês de Bioética, que reúnem um grupo multidisciplinar, que estuda situações complexas e dá um parecer que pode auxiliar os médicos a tomarem a melhor decisão.

Quem explicou a função e os métodos dos comitês foi a Camila Cortez, advogada do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) e diretora e Professora do Instituto BIOMEDS.

Esses comitês costumam reunir médicos, enfermeiros, membros da comunidade local, advogados e até um líder religioso. “Montar o grupo é até fácil, o desafio é manter essas pessoas engajadas a agir quando o comitê é requisitado”, explica Cortez.

Ela lembra, ainda, daquilo que os comitês não servem. “Eles não são um órgão julgador, nem substituem a responsabilidade e a palavra final do médio. Quando sai um parecer, o médico age em cima dessas observações, mas não se trata de uma sentença”, lembra a advogada.

Para mostrar como funciona na prática, a médica Ana Cristina de Castro produziu um workshop para debater a possível solução de um caso real com os presentes.