Comemora-se em 24 de março o Dia Internacional pelo Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas, que foi instituído pela Assembleia Geral da ONU em 2010. Num mundo em que a paz se revela efêmera e em que arroubos autoritários voltam à moda, esconder a verdade, ou criar mentiras, torna-se arma de guerra e de embates políticos.
A parte civilizada do globo tenta vencer o extremismo calcado em fake news e em idolatrias inimagináveis no século XXI, como a Adolf Hitler. Os grupos neonazistas cresceram 270% no Brasil, entre janeiro de 2019 e maio de 2021, impulsionados por discursos de ódio e contra minorias, conforme estudo da antropóloga Adriana Dias, da Unicamp. Estima-se a existência de 530 núcleos neonazistas no país, reunindo 10 mil pessoas.
Ao passo que a verdade cruel do Holocausto chega a ser negada por discursos lunáticos, outras verdades insistem em permanecer escondidas. No caso brasileiro, o termo “direito à verdade” remete, obrigatoriamente, à ditadura militar (1965-1985), com seus torturados, mortos e desaparecidos. A Comissão Nacional da Verdade, que atuou por dois anos (2012-2014), trouxe muitos fatos à luz, mas seu relatório final exige desdobramentos que ainda não aconteceram.
A Constituição Federal, em seu artigo 216, estabelece a verdade histórica como direito inalienável, mas a Lei da Anistia, de 1979, tem servido para impedir punições de criminosos a serviço do Estado. “Do ponto de vista do Direito, deve-se observar a chamada ‘justiça de transição’, ou seja, há crimes que não têm tempo para acabar, quando a sociedade sai de um período traumático”, diz o advogado Flávio de Leão Bastos, coordenador do Núcleo de Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB SP.
O que não se faz no Brasil – desvendar desaparecimentos políticos e punir os responsáveis, por exemplo –, faz-se na Argentina, onde ditadores foram condenados e as Forças Armadas, remodeladas. “A Alemanha, até hoje, leva a julgamento gente que colaborou com o extermínio nazista. A África do Sul faz o mesmo em relação ao apartheid”, cita Bastos.
Ilustrativo do terror de Estado e pouco lembrado, segundo o coordenador, o Reformatório Krenak foi um presídio de índios que funcionou em Resplendor, Minas Gerais, de 1969 a 1972. Ninguém foi punido por atuar naquele verdadeiro campo de concentração e, no momento em que os povos indígenas estão prestes a serem submetidos ao “Pacote da Destruição” (saiba mais nesta matéria do JA), trazer à tona aquela aberração humanitária é imprescindível para demonstrar a perseguição histórica a que os nativos são submetidos.
Eis um trecho a respeito contido no relatório final da Comissão Nacional da Verdade: “(…) Com base na documentação reunida [a CNV] reconhece, no Reformatório Krenak e na Fazenda Guarani (que o sucedeu), a sua abrangência nacional quanto à função de prisão de índios rebeldes, encarcerando indígenas de 23 etnias. Ademais, especificamente para a população Krenak, obrigada a viver sob as mesmas condições de índios presos em suas terras, o reformatório assume um caráter de ‘campo de concentração’, conforme denunciado no Tribunal Russel II, ou ‘prisão domiciliar’, como descrito no caso Aikewara. Os indícios levantados relacionam esse reformatório aos centros de tortura, e portanto, as investigações deverão ser aprofundadas pelo Estado brasileiro”.
Para Bastos, o momento brasileiro e mundial é de “risco de retrocesso” no campo dos direitos humanos e do direito à verdade. “A verdade histórica, cientificamente comprovada, está sob ataque. Quando a verdade é atacada, especialmente pela internet, a democracia corre risco”, alerta.
A verdade de um lugar sinistro
Desnudar as atrocidades da ditadura brasileira, em respeito às vítimas e a seus familiares que anseiam por conhecer a verdade, passa por lembrar o que acontecia dentro do sinistro complexo da Rua Tutoia 921, na Zona Sul de São Paulo, onde funcionou o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), em cujos porões reinava o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Sete mil brasileiros e brasileiras foram presos e torturados no DOI-Codi e 54 ali morreram. O tenebroso prédio foi tombado em 2014 e houve compromisso do então governador paulista, Geraldo Alckmin, de transferi-lo à Secretaria da Cultura para que fosse transformado em um memorial às vítimas da ditadura.
Na atual administração, o Governo do Estado, contudo, reluta em concretizar a transferência do complexo para o âmbito da Cultura. De uma audiência pública realizada em 9 de setembro do ano passado, por decisão do juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, resultou que prédio não poderá ter outro destino a não ser o de constituir um memorial.
Organismos de direitos humanos lançaram, no fim de 2021, o documentário “O Dia em que a Justiça Entrou no DOI-Codi”, de Camilo Tavares, mesmo autor do premiado “O Dia que Durou 21 Anos”, sobre a ditadura militar brasileira. O filme, produzido pela Nexo Filmes, mostra os quatro prédios que compõem o complexo da Tutoia, seus corredores, salas e porões sendo visitados por gente lá sofreu.
Os olhos do diretor são sensíveis, como toda a sua obra é. Sensibilidade de quem sabe o que filma: Camilo é filho do jornalista Flávio Tavares, outro dos personagens da História brasileira que, talvez pela coragem, talvez pela inteligência, foram perseguidos pelos militares.
Para assistir “O Dia em que a Justiça Entrou no DOI- Codi”, clique AQUI.