Passaram-se 35 anos desde o fim da ditadura militar brasileira, para muitos uma ditadura civil-militar, após um processo de transição consumado com a promulgação da chamada Constituição Cidadã, há 33 anos. Mais longeva é a Lei da Anistia: a norma conciliatória tem 41 anos. Mais recentes são os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que ocorreram entre 2012 e 2014. Desses fatos históricos, em tese reparadores, restam perguntas: a verdade sobre o mais obscuro período da História do Brasil está plenamente revelada? A memória de homens e mulheres que sucumbiram perante a perseguição estatal está resgatada?
Para que tais indagações tenham respostas concretas, o Brasil incluiu no calendário nacional de datas comemorativas o Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Graves Violações aos Direitos Humanos e da Dignidade das Vítimas (Lei 13.605 / 2018), comemorado em 24 de março.
“Ainda estamos muito longe de conhecer tudo o que se passou durante a ditadura civil-militar brasileira, e por diversos fatores. Infelizmente, nem todos os documentos daquele período foram liberados, o que dificulta a investigação e a pesquisa para elucidação dos fatos. Além disso, ainda existem desaparecidos políticos, talvez as mais graves e dolorosas ocultações. Portanto, a verdade sobre a ditadura está longe de ser uma realidade. O que temos, ao contrário, são silêncios e esquecimentos forçados”, avalia a historiadora Juliana Marques do Nascimento, cuja tese de mestrado na Universidade Federal Fluminense versou sobre a imagem da mulher militante nos ciclos de memória sobre a ditadura de 1964-1985.
Como alento, segundo Juliana, há trabalhos científicos sendo produzidos para esclarecer e analisar criticamente o que ocorreu em um passado tão doloroso – daí a importância crucial do fomento à pesquisa e às universidades. “Uma grande dificuldade, porém, é a barreira existente entre esses estudos e a população em geral, não-acadêmica. É necessário pensar em formas de transpor tais barreiras e fazer com que as reflexões de qualidade, científicas, cheguem à sociedade como um todo”, adverte.
Talvez mais complexo seja identificar e processar, hoje, os responsáveis pelos crimes praticados durante o regime militar em nome de uma suposta segurança nacional. O entrave maior é a Lei da Anistia, fruto de uma espécie de conchavo que, ao passo que findou as penas contra opositores do regime presos e exilados, livrou torturadores e assassinos da Justiça.
A Lei da Anistia foi revisada pelo Supremo Tribunal Federal, movido por ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) oriunda do Conselho Federal da OAB em 2007. Prevaleceu a norma original, conforme voto do relator, ministro Eros Grau, proferido em 2009. Em 2017, Eros Grau deu entrevista à reportagem da CAASP, e explicou sua postura: “O que diz a lei? A lei concede anistia ampla, geral e irrestrita. Isso é constitucional? Sim. Um juiz aplica a lei. Se eu pudesse, ou lá estivesse não como juiz mas como cidadão, eu diria: ‘Não dá para dar anistia para os torturadores’. Acontece que a lei deu, e eu não posso ir além da lei”.
Para a historiadora do UFF, a Lei da Anistia “não blindou só criminosos, mas todo um sistema de terrorismo de Estado implantado para expurgar e banir toda e qualquer forma de oposição”.
“A Lei da Anistia é fruto de um pacto conciliatório entre Estado e sociedade civil para ‘superar’ um passado traumático. Assim, em nome de uma transição democrática ‘pacífica’ e ‘sem revanchismos’, os presos políticos foram soltos e perdoados. Em contrapartida, os torturadores e, por conseguinte, a política de violência de Estado passaram incólumes”, analisa Juliana Marques.
A violação institucionalizada dos direitos humanos que predominou no Brasil por 20 anos, portanto, ainda não teve a reparação que sua gravidade exige. Ex-presos e ex-presas políticas, exilados e exiladas, torturados e torturadas e, em muitos casos seus familiares, conquistaram do Estado compensações pecuniárias. “Nesse sentido, pode-se afirmar que estão sendo recompensados pelo tempo perdido na clandestinidade ou na prisão, quando estavam impedidos de exercer suas atividades profissionais. Porém, nada repara os danos psicológicos causados pelas violências sofridas em cárceres e estabelecimentos estatais. Dessa forma, as reparações estão longe de serem satisfatórias e atenderem completamente as demandas dos familiares e das vítimas por esclarecimentos e, principalmente, justiça aos perpetradores da perseguição e violência política”, diz Juliana Marques.
Outros países que viveram ditaturas como a brasileira promoveram resgates históricos e judiciais de fato, indo além da mera edição de livros, reportagens e documentários reveladores. Exemplo mais próximo é o destino que a Argentina deu ao ex-ditador Jorge Rafael Videla, que faleceu encarcerado em 2013, enquanto cumpria pena perpétua por crimes contra a humanidade.
“Na Argentina há um grande processo de educação e conscientização da população sobre o que aconteceu durante a última ditadura militar, através do fomento público a instituições culturais e lugares de memória que evoquem e analisem a ditadura, além do debate público constante sobre o assunto, tanto nas escolas quanto em filmes, jornais etc. Aliada a essa estratégia está a importante punição jurídica dos perpetradores – o que só ocorreu mediante o reconhecimento do Estado pelas violações ocorridas”, explica a historiadora.
“Outro caso emblemático é o da África do Sul que, pós-apartheid, instituiu a Comissão da Verdade e Reconciliação, que se propôs a esclarecer definitivamente os crimes cometidos, em uma iniciativa conjunta de vítimas e agressores, sem, no entanto, ter como objetivo final uma punição jurídica, mas sim, a elucidação total dos fatos e sua inclusão no debate público, sem silêncios”, cita Juliana Marques.
A violência como ferramenta do Estado e o desrespeito aos direitos humanos são fatores presentes desde a época colonial no Brasil – isso é ponto pacífico entre os historiadores. Não se pode esquecer a ditadura getulista do Estado Novo, de 1937 a 1946. Para Juliana Marques, além disso o país tem heranças da ditadura 1964-1985 ainda ativas. “O próprio fato de familiares seguirem sem esclarecimentos sobre o paradeiro de entes desaparecidos sob custódia estatal é um desrespeito aos direitos humanos. Porém, não se pode esquecer da truculência policial ainda corrente nas áreas mais periféricas do país, do assassinato em massa, principalmente da população negra, perpetrado ainda hoje por esses agentes”, protesta.
Maurice Politi, memória viva
Assim o descreve o Memorial da Resistência de São Paulo (memorialdaresistencia.org.br): “Maurice Politi nasceu no dia 24 de janeiro de 1949 em Alexandria, no Egito. Imigrou para o Brasil em 1958 ao lado de sua família, após serem expulsos do país em virtude da Guerra de Suez. Vivendo na capital paulista, ingressou em 1968 na Escola de Comunicação e Artes da USP e logo se aproximou do Movimento Estudantil. Envolvido na luta de oposição à ditadura, passou a militar no setor de apoio logístico da Ação Libertadora Nacional (ALN). Em decorrência de seu engajamento político, foi preso pela Operação Bandeirantes (Oban) em 20 de março de 1970, aos 21 anos de idade. Ao longo dos quatro anos em que esteve preso, passou por diversos cárceres no Estado de São Paulo: DOI-Codi, Deops, Presídio Tiradentes, Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), Penitenciária Regional de Presidente Venceslau e Presídio do Hipódromo. Ao fim de sua condenação, a Auditoria da Justiça Militar concedeu-lhe o alvará de soltura. No entanto, Maurice foi mantido preso para aguardar o decreto de outro processo que corria junto à Delegacia Especializada de Estrangeiros. Após um ano aguardando a liminar, Maurice, que era apátrida e estava enquadrado na Lei de Segurança Nacional, acabou sendo expulso do Brasil. Com efeito, seguiu, em 1975, para o exílio em Israel. Seu retorno ao Brasil ocorreu somente em 1980, após promulgação da Lei de Anistia. Atualmente é defensor dos Direitos Humanos e dirige o Núcleo de Preservação da Memória Política (Núcleo Memória)”.
A reportagem da CAASP conversou com Maurice Politi para compor esta matéria, alusiva ao Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Graves Violações aos Direitos Humanos e da Dignidade das Vítimas.
“A verdade sobre a ditadura brasileira começou a ser exposta em 2007. O ápice foi a instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 2012, certamente um marco importante. Mas o relatório final, denso, não foi adiante. Foi engavetado, hoje faz parte de bibliotecas. No Uruguai, criou-se uma secretaria para dar continuidade aos trabalhos de comissão semelhante”, relata Politi.
Segundo o ativista dos direitos humanos, houve iniciativas no campo judicial para identificar e punir criminosos a serviço do Estado na ditadura, a exemplo do que fez o Ministério Público Federal entre 2012 e 2017. “Foram 27 ações penais contra torturadores e para que se descobrissem paradeiros. Infelizmente, ao chegar aos tribunais, todas foram encerradas com base na Lei da Anistia”, lamenta Politi.
Nesse cenário de impunidade, um caso chama à atenção e mostra possibilidade de interpretação diversa da lei. Em agosto de 2019, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região aceitou denúncia de sequestro e estupro de Inês Etienne Romeu contra o sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro de Lima, conhecido como Camarão. Trata-se do primeiro processo criminal por estupro aberto contra militares por crimes cometidos durante a ditadura.
Inês foi sequestrada em São Paulo em 5 de maio de 1971, aos 28 anos, e levada à Casa da Morte, notório centro de torturas e execuções da ditadura, onde, de acordo com seu relato, foi torturada e estuprada pelo sargento reformado. Ao acatar a denúncia, o TRF-2 reformou uma decisão da 1ª Vara Federal Criminal de Petrópolis que, por meio do juiz Alcir Luiz Lopes Neto, arquivara o caso no dia 8 de março de 2017, invocando a Lei de Anistia e a prescrição de crimes.
Politi enfatiza, de outra parte, que o Brasil foi condenado duas vezes na Corte Interamericana de Direitos Humanos: em 2010, pelos assassinatos de integrantes da Guerrilha do Araguaia; e em 2018, pelo caso Vladimir Herzog. “O Brasil descumpre regras que assumiu quando aderiu aos princípios da Corte Interamericana. Infelizmente, a Lei da Anistia, por um equívoco, considera que torturas e assassinatos estão amparados por ela”.
Para completar o mal-estar internacional a que o país está sujeito, em fevereiro de 2021 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou ao Brasil uma série de medidas, encabeçadas pelo chamamento “Memória, verdade e justiça”.
A CIDH recomenda ao Brasil, entre outras medidas, criar um órgão para controlar o cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade, fortalecer os mecanismos e ações voltados à reparação integral das vítimas de violações de direitos humanos perpetradas no contexto da ditadura civil-militar, realizar ex officio todas as ações necessárias para determinar o destino ou paradeiro das vítimas de desaparecimento forçado e, talvez o item mais relevante: investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os auto-res materiais e intelectuais de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes de responsabilidade, e medidas que pretendam impedir a persecução penal ou suprimir os efeitos de uma sentença condenatória.
Politi recorda que a Lei da Anistia foi acordada entre forças políticas contrárias ao regime e o último ditador, general João Batista Figueiredo, e aprovada na Câmara por um placar apertado. “Houve os que votaram contra essa forma de anistia. A Lei da Anistia é uma conquista da sociedade civil, mas infelizmente conta com o parágrafo dos chamados crimes conexos – uma falácia. Eu, por exemplo me opus a um regime. O torturador está a serviço do Estado – não há igualdade”.
O diretor do Núcleo Memória enxerga a prática de tortura ainda presente no país, notadamente em delegacias de polícia, como um legado da ditadura. “O policial, quando tortura, sabe que no passado outros torturaram e com eles nada aconteceu”, observa. E provoca: “Tortura? Vai na delegacia do seu bairro que você vê. Na nossa época, era contra intelectuais, jornalistas, artistas, professores, militantes. Hoje você pode ver também nas periferias, contra negros e pobres”.