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Da escravidão ao racismo epistemológico: a importância da Comissão Permanente de Igualdade Racial da OAB SP

By 5 de outubro de 2021novembro 19th, 2021No Comments

Isabella Garcia, mulher negra, foi bolsista FAPESP de iniciação científica entre 2018 e 2020 durante a graduação em Direito pela PUC-Campinas, mestranda em Direito na linha de Cooperação Internacional e Direitos Humanos pela PUC-Campinas, aprovada no exame XXXII da Ordem dos Advogados do Brasil.

Pedro Pulzatto Peruzzo, advogado consultor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, membro do corpo docente permanente do mestrado em Direito da PUC-Campinas e representante do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN) na Comissão Permanente de Monitoramento e Ações na Implementação das Obrigações Internacionais em Matéria de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Direitos Humanos.

No dia 27 de setembro de 2021, a OAB SP aprovou a permanência da Comissão Especial de Igualdade Racial em sua estrutura. A deliberação é histórica, pois demonstra o reconhecimento da importância simbólica dessa Comissão na estrutura da OAB e, do mesmo modo, abre caminho para um trabalho, mais complexo, de ampliação do processo de tomada de consciência do racismo estrutural.

O reconhecimento da importância simbólica da Comissão fica evidente pela decisão de mantê-la de forma permanente na estrutura da Ordem. No entanto, a ampliação do processo de tomada de consciência do racismo estrutural não é algo tão simples ou evidente assim. Esclarecer algumas vias para a ampliação desse processo é importante para que a Comissão não permaneça na estrutura da Ordem apenas por forma, mas como uma instância de construção legítima de pautas com projeção transversal na estrutura de todas as outras comissões da OAB-SP e na sociedade. Aliás, essa é a ideia que deve nortear os trabalhos de outras comissões transversais, como a de Direitos Humanos, Mulheres e Diversidade Sexual.

Um primeiro ponto importante para o processo de tomada de consciência, é entender o que significa racismo estrutural. O professor Silvio Almeida traça uma distinção importante entre preconceito, discriminação e racismo. O preconceito é fundado em estereótipos, característica de determinados grupos que podem ou não conduzir à discriminação. Na discriminação, por outro lado, existe o tratamento diferenciado que causa desvantagens ao grupo marginalizado. Nesse caso, o poder é instrumentalizado para dar a vantagem ou a desvantagem. “Discriminação racial é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados.” (ALMEIDA, 2019, p.32).

Assim, a discriminação pode ser direta e ocorre quando um indivíduo ou grupo rejeita outro grupo ostensivamente. Também pode ser indireta, quando grupos de pessoas social, cultural ou racialmente diferenciados são ignorados pela sociedade ou parte dela.

O racismo estrutural, portanto, é aquele que impregna as estruturas sociais, do imaginário coletivo às instâncias do Estado. Exemplo disso é a afirmação arbitrária de que negros eram despossuídos de alma, tese utilizada por séculos para justificar a escravidão dos povos do continente africano. Essa ideia se enraizou na estrutura da sociedade brasileira de tal modo que não é raro a memória da escravidão vir à tona toda vez que se discute racismo. As lutas das negras e negros, muito mais amplas do que a justiça histórica diante da escravidão, não raras vezes são reduzidas à memória desse crime contra a humanidade.

Daí a importância de uma Comissão permanente na OAB SP para tratar do racismo que, sim, tem a ver com a escravidão, mas também tem a ver com interseccionalidade (GARCIA e PERUZZO, 2020), com empregabilidade, com violência policial, com acesso à saúde e também com racismo epistemológico. Aliás, é na chave do racismo epistemológico que se consolida o argumento de que a escravidão, no Brasil, não teve um viés racial.

Quem já leu uma escritura de compra e venda de negros escravizados sabe bem que não havia registro de venda de ser humano, mas de “semoventes”. Exatamente por isso, o comando normativo extraído do inciso XIII, do artigo 179, da Constituição de 1824, que dizia que “a Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”, não traduzia um direito às negras e negros, na medida em que estes não estavam compreendidos, por questões racistas, no conceito de “todos”, reservado para humanos, e não para “semoventes”.

A discussão sobre raça parece proibida no Brasil! Mas a OAB SP decidiu dar um passo de maturidade e não fechar as portas e nem os olhos para ela. A OAB SP, em outros termos, decidiu retirar a própria venda ou, pelo menos, permitir que isso seja feito pelos que ainda insistem em olhar pro mundo através das lentes da realidade.

A justificativa da promoção de uma justiça social para todos os brasileiros fundamentada na igualdade formal e na meritocracia é um prato cheio para a camada dominante da sociedade argumentar como sendo ameaça, conflito ou agressão qualquer forma de conscientização sobre o racismo. Tentar fugir dos conflitos raciais que envolvem a estrutura da sociedade brasileira é enganar-se perante a realidade.

Como afirma Silvio Almeida: “A noção de raça  como referência a distintas categorias de seres humanos é um fenômeno da modernidade que remonta aos meados do século XVI” (ALMEIDA, 2019, p.24). A expansão comercial burguesa e a cultura renascentista construíram para um novo pensamento filosófico que, posteriormente, colocaria o homem europeu e suas manifestações culturais como universal. Por outro lado, todos os povos que não correspondiam a essas características eram considerados menos desenvolvidos, atrasados e passiveis de escravização (AMEIDA, 2019, p.25). A partir desse pensamento, a categorização de indígenas e negros como menos evoluídos, por não compartilharem das caraterísticas biológicas e culturais dos europeus, foi utilizada como uma das justificativas para a escravização desses grupos e seus descendentes por séculos.

É sobre isso, portanto, que se debruça a crítica ao racismo estrutural. É sobre isso que, ademais, se debruça a crítica a um sistema de justiça e às instituições que o auxiliam e que reproduzem muito do escalonamento de raças, que marcou o nascimento dos primeiros cursos de Direito no Brasil.

Ana Lucia Pastore Schritzmeyer (2010), comenta o seguinte sobre o uso que a elite brasileira fez do liberalismo, do darwinismo social e do evolucionismo:

Uma das principais ginásticas intelectuais desses políticos foi fazer com que o liberalismo e seus pressupostos da responsabilidade individual e do livre arbítrio, paradoxalmente dialogassem com o modelo darwinista social e com a teoria evolucionista, cujos pressupostos centrais eram os de que raças e sociedades evoluem de forma simples para complexas e, portanto, tendem a se aperfeiçoar continuamente, embora de acordo com critérios pré-estabelecidos pela “natureza” e, portanto, independentes das vontades dos sujeitos. O paradoxo residia, assim, no fato de o liberalismo colocar o indivíduo como senhor de suas ações e vontades enquanto o determinismo biológico e o evolucionismo apontavam limites “naturais” para o livre arbítrio.

Lilia M. Schwarcz (1993), por seu turno, analisa essa influência no Direito e nos atores do bacharelismo, cujos tentáculos parecem permanecer incrustados em algumas esferas da vida social ainda hoje:

A recepção dessas teorias científicas deterministas significava a entrada de um discurso secular e temporal que, no contexto brasileiro, transformava-se em instrumento de combate a uma série de instituições assentadas. No caso da faculdade de Recife, a introdução simultânea dos modelos evolucionistas e social-darwinistas resultou em uma tentativa bastante imediata de adaptar o direito a essas teorias, aplicando-as à realidade nacional.

Não seria demais lembrar, também, que após a Lei Aurea, de 1888, não existiu nenhuma política estrutural de inclusão do povo negro. O que houve foi, 2 anos depois, a criminalização da capoeira, das correrias e a redução da maioridade penal para 9 anos com o Código Penal de 1890. Ou seja, a dimensão racial da escravidão de negras e negros é tão evidente quanto a existência do sol.

Se, por um lado, a escravidão, na história da humanidade, nem sempre teve um recorte racial, basta conhecer um pouco, bem pouco, de história do Direito, para entender a dimensão estrutural do racismo e avançar para bem longe da falsa premissa que, ainda hoje, sustenta que, no Brasil, a escravidão não teve nada a ver com racismo.

Exatamente por isso, OAB, Comissão Permanente de Igualdade Racial, e também Comissões permanente de Direitos Humanos, de Mulheres, de Diversidade Sexual, e de todos os outros grupos diferenciados historicamente apagados, são espaços tão importantes. E até que se supere de uma vez por todas as dores praticamente insuperáveis de séculos de racismo, sempre será necessário o tema para incomodar todas e todos aqueles que fazem questão de seguirem deitados no berço esplêndido da ignorância histórica.

Outra expressão do viés racista da escravidão e do acesso ao trabalho digno está no Decreto nº 528/1890. Nesse período, o Brasil estimulou a vinda de imigrantes para trabalhar e ocupar os postos de trabalhos que ficaram “vazios” com a abolição. Contudo, o convite brasileiro para imigração era claramente discriminatório, pois estabelecia condições distintas para os negros.

Art. 1º E’ inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos individuos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos á acção criminal do seu paiz, exceptuados os indigenas da Asia, ou da Africa que sómente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admittidos de accordo com as condições que forem então estipuladas.

Em 1934, foi instaurada a nova Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil que, em seu artigo 138, b, previa: “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: b) estimular a educação eugênica;”.

Quando as próprias leis do país, incluindo a Constituição Federal, fazem distinção expressa com motivo de raça e, pior, na sequência, fala em educação eugênica, não há como dizer que o racismo institucionalizado no passado se refira a casos isolados ou insignificantes para a sociedade.

Acreditar no mito da democracia racial, que sustenta que as diferentes raças vivem em completa harmonia, e que conflitos raciais não são traçados a todo o momento, é deslegitimar séculos de luta indígena e negra. E mais, beira a hipocrisia, pois se imaginássemos uma consulta aos brancos do Brasil sobre quais deles, sob o argumento hipócrita de que todos têm um pezinho na senzala e que vivemos uma democracia racial, gostariam de viver por estas bandas com a pele negra, dificilmente teríamos um voto de coragem. Afinal, ser negra e negro num país racista como o Brasil não é tarefa que qualquer um aguenta.

A permanência da  Comissão Especial de Igualdade Racial da OAB SP é uma vitória para a reivindicação de direitos pelas vitimas de discriminação racial e de racismo epistemológico. É uma forma de reconhecer o racismo na sociedade e tirar das vítimas e das suas lutas a falsa culpa da permanência dos conflitos.

As comissões da Ordem dos Advogados do Brasil são espaços tradicionais de reflexões teóricas e articulações políticas e é encarando de frente os fatos históricos que as marcas do chicote poderão ser superadas, do mesmo modo que as marcas da violência doméstica, do eletrochoque das instituições manicomiais, da tortura no DOI-CODI e assim por diante.

Falar, estudar, lembrar e, se preciso, lutar muito para não repetir! Negar o conflito racial em nome da igualdade formal é uma forma de promoção da discriminação e a OAB SP decidiu romper com esse absurdo.

Vida longa à Comissão Permanente de Igualdade Racial da OAB SP!

Referências:

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte-MG: Editora Letramento. 2018.

GARCIA, Isabella; PERUZZO, Pedro Pulzatto. A aplicação do conceito de discriminação racial nas Recomendações Gerais e Relatórios anuais do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial da ONU. BOLETIM CAMPINEIRO DE GEOGRAFIA. , v.10, p.241 – 259, 2020. < http://agbcampinas.com.br/bcg/index.php/boletim-campineiro/article/view/454>

NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro Brasileiro. São Paulo-SP: Editora Perspectiva. 2016.

SCHRITZMEYER, A. L. P. O ensino da antropologia jurídica e a pesquisa em direitos humanos. in Nalini, José Renato e Carlini, Angélica Luciá (org.). Formação Jurídica e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.137-153.

SCHWARKCZ, L. M. O Espetáculo das Raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.