Carmela Dell´Isola[1]
As mulheres são a maioria na advocacia? Sim, mas nem tanto.
De acordo com dados recentes divulgados pelo Conselho Federal da OAB, em um total de 1.319.357 inscritos, mais de 51% são compostos por advogadas e quase 49% de advogados. Em termos numéricos por estado, São Paulo tem o maior contingente da advocacia feminina, 170.632, seguido por Rio de Janeiro, com 76.862, e Rio Grande do Sul, com 45.886.
Em toda a história da OAB, a instituição compartilha atualmente um cenário inovador. As advogadas, em números totais, passam à frente dos advogados. É um marco a se comemorar. É o retrato de que os rumos da advocacia têm se modificado com o decorrer dos anos.
Mas a pesar do recorte quantitativo da advocacia feminina ser superior ao da masculina, seria essa uma realidade que ocorre em todas as etapas da carreira da mulher advogada?
O quadro “Quantitativo por Faixa Etária”, divulgado pelo Conselho Federal da OAB, revela que a advocacia feminina é maioria até os 40 anos. A partir dos 41, o cenário se inverte, dando margem à prevalência masculina. Ou seja, entre os advogados e advogadas de 41 e 59 anos, 52,4% são homens; e a partir dos 60 anos, 66,3% dos inscritos nesta faixa etária são advogados.
Os extratos demonstram a evolução feminina no tocante ao registro profissional. No quadro quantitativo são a maioria, mas, no campo fático, as mulheres ainda são a minoria na carreira. A lógica masculina construída permanece, mantendo as mulheres concentradas nos estágios iniciais da profissão.
O cenário nos reporta a importantes reflexões acerca da igualdade de gênero no exercício da advocacia.
A profissão é destacada no texto constitucional como função essencial à Justiça (arts. 131 e 132 da CRFB) e forma a estrutura da ordem jurídica consagrada pelo Estado Democrático de Direito. Advogadas e advogados, em igualdade de condições, têm assegurado o direito de exercer a profissão (art. 5º, caput, CRFB).
Ainda assim, a advocacia feminina enfrenta barreiras. E não são poucas. Apesar de preparadas e qualificadas, muitas profissionais encontram limites invisíveis marcados pelo falocentrismo que acarreta segregação horizontal (parede de cristal) e vertical (teto de vidro), relegando às advogadas áreas de especialidade menores e posições de base nas carreiras.
A pesquisa “Como está a diversidade de gênero nos escritórios de advocacia no Brasil”, realizada pela Women in Law Mentoring Brazil, de 2019, revela que as chances de uma advogada se tornarem sócia são menores em relação às oportunidades oferecidas a um homem. Apesar de responderem por 57% dos profissionais na composição geral dos escritórios, somente 34,9% das mulheres são contempladas no quadro de sócios de capital.
Aspectos que marcam o gênero feminino também esbarram na ascensão e solidificação da carreira. A maternidade é a principal delas. A necessidade de se dedicar também à família faz com que muitas advogadas escolham ocupações menos favoráveis, a fim de equilibrar os ambientes profissional e familiar, ou, ainda, se afastarem da profissão. Esse pressuposto reduz o interesse em investir profissionalmente nelas, o que reforça o “teto de vidro”, mantendo as mulheres em posições subalternas.
A discriminação de gênero, o assédio moral e o sexual são problemas também enfrentados pela advocacia feminina. São questões graves que acarretam consequências danosas à carreira, assim como à saúde, física, psicológica e financeira. O Datafolha, em pesquisa realizada em 2021, revela que: “Em 18% dos casos de assédio sexual as mulheres afirmaram que a conduta partiu de clientes, enquanto em 17% dos casos foram os próprios colegas de escritório que cometeram o crime. Os chefes assediaram em 16% dos casos; e, para 8% das entrevistadas, o delito foi cometido nos fóruns ou outros ambientes da Justiça.” E, ainda, “Quanto ao tema da discriminação de gênero, as mulheres advogadas foram vítimas desse ato nas seguintes situações: 22% por parte de clientes, 20% no fórum ou outro ambiente da Justiça, 17% de colegas de escritório ou do local de trabalho e 13% dos chefes.”
Em seu papel institucional, a OAB criou o Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada (Provimento nº 164, de 21 de setembro de 2015). A Lei nº 13.363/2016, que altera o Estatuto da Advocacia, assegura direitos às advogadas grávidas, lactantes no período pós-parto ou após a adoção. A Resolução nº 05/2020, aprovada pelo Conselho Pleno do Conselho Federal da OAB, determina reforma eleitoral ao implementar cotas para mulheres advogadas (50%) e para advogados(as) negros(as) (30%) para cargos diretivos, que resultou na alteração do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/1994).
Embora as experiências sejam únicas e heterogêneas, outras matrizes de opressão de gênero perpassam vivências em diferentes frentes. A seara do discurso “ser mulher”, “ser idosa” e “ser negra” traz uma problemática muito particular na sociedade atual e coloca a profissional em uma posição de dupla ou até mesmo tripla vulnerabilidade, em decorrência de posturas sexistas, etaristas e racistas.
Em uma análise quantitativa destes grupos, de acordo com o “Quantitativo por Faixa Etária”, divulgado pelo Conselho Federal da OAB, as mulheres advogadas com 60 anos ou mais representam apenas 34% dos inscritos nesta faixa etária. Com relação a representatividade da mulher advogada negra ou parda, não existem dados divulgados pelo órgão, pois não houve censo para análise racial até o momento.
As dificuldades e obstáculos não foram suficientes para impedir que a mulher conquistasse um lugar dentro da sociedade e, principalmente, no mundo jurídico da advocacia. Atualmente, muitas mulheres ocupam cargos de destaque na advocacia, demonstrando que as barreiras que o passado insiste em deixar pelo caminho estão sendo superadas.
Há, no entanto, um longo caminho a ser percorrido. A luta pela valorização humana da advogada integra a legitimidade constitucional da igualdade: com a participação feminina na advocacia de forma saudável e coerente com as suas necessidades, de forma estrutural e salarial, de modo que, em igual chances de oportunidades, a mulher possa construir a sua carreira com dignidade.
Um viva a todas as mulheres, especialmente às mulheres advogadas, que têm na história a voz da resistência de Esperança Garcia – primeira mulher advogada, negra e escravizada -, e, na atualidade, a das mulheres eleitas no comando das Seccionais da OAB (2022-2024), como Patricia Vanzolini, primeira Presidente eleita em 90 anos da OABSP.
Seguimos em frente!
[1] Pós Doutora em Direitos Humanos, Universidade Salamanca/Espanha. Doutora (PUCSP) e Mestre (USP) em Direito. Coordenadora GT Etarismo, Comissão da Mulher Advogada OAB SP. Advogada e professora.