Por Ricardo Toledo Santos Filho
Uma das opções principiológicas sábias do nosso Direito Penal foi a instituição de agravantes e atenuantes para a dosagem da sanção cominada aos crimes, com base no dogma da razoabilidade e da dimensão/proporcionalidade com que todos os atos humanos devem ser filtrados pela lei. A reincidência, os motivos do delito, a forma da execução, a condição de liderança e outros dados subjetivos são agravantes. A idade (menor de 18, maior de 70 anos), o desconhecimento da lei, a participação de somenos importância, o arrependimento/reparação do dano, dentre outros, constituem atenuantes. Com base nesses pressupostos, a pena pode variar entre o mínimo e o máximo, e o réu condenado poderá cumpri-la em regime fechado, semiaberto ou aberto, ou seja, ficar “atrás das grades” ou liberado para trabalho externo durante o dia.
A racionabilidade da lei e da doutrina perdem eficácia, no entanto, ao esbarrar na ideologia penal do punitivismo e sua sempiterna escolha por reprimendas mais severas, mesmo exorbitantes, como as que alcançam meros consumidores ou pequenos dependentes/vendedores ocasionais punidos como atacadistas profissionais. A depender do juiz e do tribunal, dez gramas de maconha podem render uma pena de 15 anos de reclusão. Na salutar contramão dessa tendência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem transferido condenados para o regime aberto – e sua 6ª Turma acaba de conceder habeas corpus coletivo a todos os sentenciados em São Paulo à pena de um a oito meses por tráfico de drogas – 1.438 presos. Ampliando a decisão, determinou aos juízes das Varas de Execução Penal do estado que revisem com urgência a situação de todos os condenados por tráfico a pena menor que quatro anos de reclusão e reavaliem a passagem deles para o regime aberto.
O relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, invocou o instituto supralegal do tráfico privilegiado, segundo o qual aplica-se o § 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, quando estabelece que “as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.” Para o ministro, setores do Tribunal de Justiça de São Paulo não seguem “esses postulados, ao menos no que diz respeito aos processos por crime de tráfico de entorpecente na sua forma privilegiada, em que a proporcionalidade legislativa — punir com a quantidade de pena correspondente à gravidade da conduta, mas também na sua espécie e em seu regime de cumprimento é desfeita judicialmente.”
O Tribunal paulista até aplica o instituto do tráfico privilegiado e assim, considerando as atenuantes, reduz de um sexto a dois terços a pena mínima de cinco anos prevista na lei – para um ano e oito meses. Mas a liberalidade termina aí. Em vez de conceder o regime aberto ou semiaberto para o cumprimento da pena, manda os pequenos traficantes para o sistema carcerário. Segundo dados levantados pela Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo e a ONG Conectas, o estado tem 68.976 presos por tráfico de drogas, dos quais 4.029 cumprem pena de até quatro anos em regime fechado ou semiaberto e a metade recebeu a pena de um ano e oito meses, beneficiada pela aplicação do tráfico privilegiado. Na interpretação do STJ, tais pessoas não deveriam estar presas.
A política do encarceramento em massa é particularmente cruel e até inócua em um país de cárceres superlotados e insalubres, longe de oferecer condições mínimas de atendimento a um dos clássicos objetivos da prisão: a regeneração do condenado para posterior reintegração na sociedade, isento de conduta criminosa. No caso dos beneficiados pelo tráfico privilegiado, eram réus primários, de bons antecedentes, não se dedicavam ao crime nem integravam organização criminosa. Já punidos com a pena, devem ficar longe do cárcere que não regenera nem ressocializa, antes degrada o indivíduo em ambiente nefasto. Quem sabe a prisão-spa da Dinamarca reabilite, mas a do Brasil, no dizer de Roberto Lyra, no clássico Comentários ao Código Penal, se convolou em “fábrica e escola de reincidência, habitualidade, profissionalidade, que produz e reproduz criminosos”.
Ricardo Toledo Santos Filho, vice-presidente da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil