Com o crescimento dos transtornos mentais entre advogados e advogadas, especialmente em decorrência de mudanças bruscas nas rotinas de vida provocadas pela pandemia da Covid-19, a Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo (CAASP) vem se preocupando em estimular a busca de ajuda profissional para a preservação de uma mente sã. Para tanto, realizou a Campanha de Saúde Mental 2022, com consulta gratuita, entre outras ações. Paralelamente, a CAASP utiliza seus meios de comunicação para orientar a advocacia em questões de saúde mental, afinal, a classe que se ocupa antes de tudo com o bem-estar do outro – no caso, o cliente – não pode esquecer de si própria.
No Janeiro Branco, mês da saúde mental, a entidade publica entrevista com a psicóloga Yara Cassemiliano, que possui extensão em Psicologia Política e Políticas Públicas pela USP e pós-graduação em Neuropsicológica e em Psicologia Cognitiva e Comportamental.
CAASP: O advogado é conhecido por ser um profissional que vive os problemas alheios. Como isso interfere na sua saúde mental?
Yara: Interfere muito e pode levar a um quadro de esgotamento mental, porque a profissão exige essa intervenção e interação com o cliente, fazendo o nível da demanda emocional ser muito alta. É importante ter sempre um olhar cuidadoso com a saúde emocional e saber identificar as mudanças no comportamento que indicam esgotamento, como a irritabilidade, inapetência ou apetite em excesso. A qualidade do sono também pode ser afetada, com quadros de insônia ou despertar noturno.
Muitos desses sinais podem ser ignorados pelos advogados. Qual seria o principal sintoma que indica a hora de buscar um especialista?
Esse processo é bem delicado, porque existe um combo de sintomas que podem ser interpretados de várias maneiras. Fadiga e apagões durante o dia, por exemplo, são sinais de um esgotamento mental, porém, podem ser sintomas de doenças físicas. Os principais sinais que indicam a hora de procurar ajuda vêm da análise do dia a dia da própria pessoa. Se existir uma dificuldade na alimentação, repouso escasso ou dificuldade em se concentrar, são indicativos de que algo está interferindo tanto mentalmente como fisicamente. O ideal é analisar o todo desse profissional para entender se essa exaustão é somente por estresse ou tem algum outro fator.
O advogado tem dificuldade em administrar o tempo, restando pouco ou nada para a família, o lazer e o esporte. Isso tem impacto na saúde mental?
Sim. É imprescindível que exista essa divisão de tempo, porque seu uso exclusivo apenas em função do trabalho gera um desgaste muito grande. Então, é importante que haja essa delimitação de tempo entre os períodos que o profissional tem no dia, para que ele consiga trabalhar de forma saudável, ter um tempo em família e, se tiver a oportunidade, praticar atividades físicas, as quais contribuem bastante para a qualidade de vida e o lazer. Não ficar somente focado no trabalho é essencial, porque isso, além de não trazer o resultado esperado nas atividades profissionais, acaba anulando-o como pessoa, fazendo com que viva 24 horas como um advogado e esquecendo que precisa ser pai, mãe, marido, esposa, filho e filha. A anulação da vida pessoal faz com que o profissional perca toda a rede de apoio e fique mais vulnerável a doenças mentais mais graves, por conta desse isolamento emocional.
O que a senhora diz sobre este fato até corriqueiro: há advogados que chegam a dormir no escritório.
Se esse profissional está dormindo no escritório, isso indica que há um excesso de trabalho e tudo que é em excesso atrapalha. Temos que criar um equilíbrio nas atividades, fazendo pausas em horários adequados, porque, em uma situação específica como essa, o profissional está consideravelmente acometido por uma exaustão. O ideal é fragmentar o período de trabalho organizando as demandas, estabelecendo um horário para resolver algumas questões e, principalmente, conhecendo e respeitando os próprios limites. É preciso criar uma dinâmica de trabalho saudável, que não o sobrecarregue e nem atrapalhe em suas entregas.
O advogado acaba, muitas vezes, atuando como um “psicólogo” do cliente, por exemplo, em casos de Direito de Família (como separações), sem falar de situações extremas vividas mais especificamente pelos criminalistas. Como esse contato tão próximo com o cliente pode afetar a vida pessoal do advogado?
A profissão, principalmente na Vara da Família, envolve uma condição de empatia com os envolvidos do processo. É fundamental esclarecer para o cliente que o advogado vai atuar até onde o papel dele permite. As consequências que existem por decorrência desse convívio são naturais, porque gera-se essa carga emocional quando se trata de assuntos familiares. Porém, é importante impor um limite. É indispensável dividir as atividades e deixar claro tanto para si como para o cliente que, nessas instâncias emocionais, ele procure uma rede apoio ou o próprio profissional de psicologia para enfrentar o processo, assim, não sobrecarrega o advogado e deixa-o para tratar apenas das questões legais. O profissional deve se lembrar que, por mais que exista um vínculo com o cliente, não é bom misturar o papel de advogado com o de escuta.
E falando sobre esse papel da escuta, qual a importância do Janeiro Branco?
É uma campanha para divulgar a importância da saúde mental, do tratamento, do olhar e do cuidado. O período de pandemia potencializou muito essa relevância. Percebemos o quanto que a saúde física, uma condição financeira boa e o trabalho podem ser prejudicados, se você não está bem. Essa divulgação precisa existir não só em janeiro, mas durante o ano inteiro, porque as pessoas estão vulneráveis a doenças mentais todos os dias e ainda existe uma resistência ao tratamento dos transtornos, por mais que hoje seja muito mais divulgado, acessível e esclarecido. Se formos dar um exemplo no contexto da advocacia, um processo familiar na Justiça pode usar de argumento que uma pessoa não está apta para cuidar dos filhos pelo fato de ter buscado ajuda psicológica – ou seja, algo que deveria beneficiar o processo acaba prejudicando.
Qual seria o “treinamento” emocional ideal para o advogado, já que ele se envolve profundamente com problemas pessoais dos clientes?
Não existe um padrão determinado ou uma fórmula mágica. O que nós, profissionais da área, fazemos é elaborar propostas direcionadas. Sempre busco entender qual é a demanda individual para poder ajudar nesse processo de orientação. Esse “treinamento” emocional vai depender muito do que o advogado está passando, para propor e enquadrar uma proposta de intervenção na Psicoterapia para melhora dos sintomas dele.
A síndrome de burnout é uma das doenças mentais que mais acomete os advogados. É possível identificá-la, antes que se torne algo grave?
A síndrome de burnout nada mais é do que uma doença ocupacional que causa sintomas de extrema exaustão. Algumas das principais características são irritabilidade, desgaste físico e emocional – o sentimento de que se está sendo muito exigido. É importante o profissional observar seus limites, deixar de lado o conceito de alto desempenho, em que tenta manter um padrão contínuo de trabalho, mesmo que seja à custa de sua saúde, e entender que todo expediente precisa ser encerrado para que ele possa viver fora do escritório. A síndrome impede o profissional de ser protagonista da própria vida, porque quem pode e deve fazer as escolhas é o indivíduo – são essas decisões que irão contribuir para o declínio ou a melhora na qualidade de vida.