Em 30 de março de 1964, o senador paulista Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional, lança um manifesto à nação declarando o rompimento entre o Executivo e o Legislativo e conclamando as Forças Armadas a atuarem “na defesa das instituições”. Começava o desfecho do golpe que levaria o Brasil a 21 anos de uma brutal ditatura militar, e que vinha sendo cozinhado há tempos para derrubar o governo do presidente João Goulart.
A data oficial de início daquilo que alguns chamaram de “revolução” é 31 de março, mas foi em 2 de abril que Moura Andrade declarou vaga a Presidência da República e deu posse no cargo ao presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, nos termos da Constituição em vigor, a de 1946.
Na verdade, Goulart não abandonara a Presidência, tampouco se encontrava em local desconhecido – estava no Rio Grande do Sul, conforme noticiado pela imprensa naqueles dias. Além disso, fora encaminhado ofício ao Congresso por Darcy Ribeiro, então Chefe da Casa Civil da Presidência da República, comunicando que a viagem de Goulart tinha caráter oficial. Não havia vacância do cargo. Tratou-se mesmo de um golpe às claras.
Tudo isso já foi reiteradamente relatado, está documentado e testemunhado pelas personagens envolvidas. Também não restam dúvidas quanto à participação do governo dos Estados Unidos na derrubada de Goulart e na implantação de um regime de exceção no Brasil. Na verdade, em nome da sua “luta contra o comunismo”, os Estados Unidos patrocinaram todas as ditaduras latino-americanas que emergiram na Guerra Fria.
A participação americana no golpe de 64 está descrita de forma contundente no documentário “O Dia que Durou 21 Anos”, de Camilo Tavares, lançado em 2013.
“Foram dois anos de pesquisa. Por meio do Freedom of Information Act tive acesso a documentos confidenciais da CIA e da Casa Branca e a áudios dos presidentes John Kennedy e Lyndon Johnson que evidenciam a conspiração civil e militar dos Estados Unidos para derrubar João Goulart desde 1962 , dois anos antes do golpe de 1964”, disse Tavares à reportagem da CAASP.
“A documentação está disponível para consulta pública nas bibliotecas dos presidentes americanos, muito diferente do que ocorre aqui no Brasil, onde, mesmo após Lei de Livre Acesso à Informação, não há real acesso à documentação do governo na ditadura civil-militar que durou 21 anos”, denuncia o cineasta. Recentemente, o governo Barack Obama reconheceu extraoficialmente o apoio americano à ditadura brasileira e entregou ao Brasil documentos confidenciais.
O documentário de Tavares é seminal. Ganhou prêmios na França (St.Tropez) e nos Estados Unidos (Arizona e Long Island NY) e foi considerado o melhor filme do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Foi exibido em salas de 15 capitais e na televisão brasileira pelo History Channel e a Globonews, além de amplamente repercutido na imprensa nacional e internacional nos Estados Unidos, na Alemanha , na França e em países do leste europeu.
O filme é citado com ênfase no livro “1964”, de Almino Affonso, ministro do Trabalho de João Goulart e peça fundamental nas engrenagens políticas daquela época. No pós-ditadura, Affonso chegou a ser vice-governador de São Paulo de 1986 a 1989 (governo Orestes Quércia). Assim ele escreveu na sua obra de 2014: “Nos últimos meses as informações sobre a participação direta dos Estados Unidos no Golpe de Estado de 1964 ganharam maior evidência. No admirável filme ‘O Dia que Durou 21 Anos’, que o brilhante cineasta Camilo Tavares produziu, fica comprovado que a participação do Presidente John Kennedy na derrubada do Presidente João Goulart fora claramente ostensiva. O filme traz à luz documentos secretos da CIA e áudios originais da Casa Branca. Não há como inocentar Kennedy”.
Ao lado do diretor na confecção da obra esteve seu pai, o jornalista Flávio Tavares, como produtor-executivo. Flávio conhece como poucos a ditadura brasileira: em 1970 ele era um dos militantes que, presos, foram trocados pelo embaixador americano Charles Burke Elbrick, sequestrado por membros da luta armada contra o regime. A história é bem conhecida e até popular, pois é contada no livro “O que é Isso, Companheiro?”, de Fernando Gabeira, ele próprio um dos sequestradores do embaixador. Posteriormente, a obra de Gabeira originou um longa-metragem homônimo, dirigido por Bruno Barreto.
A atuação americana no golpe de 64 também é descrita minuciosamente pelo jornalista Elio Gaspari na mais completa obra literária sobre o regime militar que oprimiu o Brasil por duas décadas. Logo no primeiro dos cinco volumes da coleção “As Ilusões Armadas”, Gaspari escreve: “Em Washington, trabalhava-se havia dez dias na armação de uma força-tarefa naval que, em caso de necessidade, zarparia para a costa brasileira. Sua formação fora proposta pelo embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon. (…) No dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício (do presidente João Goulart) da Central do Brasil, o presidente Lyndon Johnson autorizara a formação de uma força naval para intervir na crise brasileira, caso isso viesse a parecer necessário. A decisão foi tomada durante reunião na Casa Branca a que compareceram Gordon, o secretário de Estado Dean Rusk, o chefe da CIA, John McCone, e representantes do Departamento de Defesa”.
Não há contestação à coleção de Elio Gaspari. Ninguém se atreveria a tanto: o jornalista herdou 25 caixas de arquivos pessoais e documentos do general Golbery do Couto e Silva, principal artífice intelectual da ditadura brasileira, bem como do processo de abertura no início dos anos 80. Chamado de “o bruxo”, Golbery, com quem Gaspari mantinha uma estreita relação de jornalista-fonte, foi um dos principais teóricos da Escola Superior de Guerra, criador do temido SNI (Serviço Nacional da Informação) e chefe da Casa Civil nos governos dos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo. Durante o período mais duro do regime militar, de 1968 a 1973, presidiu a filial brasileira da multinacional americana Dow Chemical.
“É preciso dizer que a origem do golpe foi brasileira, pela oposição às reformas de base do presidente João Goulart, eleito pelo voto direto em 1963, por dar andamento a temas como reforma agrária, voto dos analfabetos e lei de controle da remessa de lucros das multinacionais. Jango não era comunista, mas sim nacionalista, e com propostas que beneficiavam a inclusão dos mais pobres”, opina Camilo Tavares. E adverte: “Infelizmente, não aprendemos com nossa história. Me espanta a falta de noção de qualquer cidadão que manifesta apoio ao absurdo e famigerado AI-5 . Cabe a nós brasileiros impedir qualquer retrocesso e violação da ordem democrática”.