Na abertura do maior evento jurídico da América Latina, professores dedicados ao direito constitucional avaliam como o país trata seus direitos fundamentais
Os professores Oscar Vilhena, da FGV, e Maria Garcia, da PUC-SP, falaram sobre os 35 anos da Constituição na abertura da Fenalaw 2023, o principal evento jurídico da América Latina. As falas abriram a feira que começou nesta quarta-feira (25) e vai até sexta-feira (27), no Centro de Exposições Frei Caneca, na Capital paulista.
Segundo o professor Oscar Vilhena, se 35 anos não parecem ser suficientes para uma grande comemoração, a Constituição pede essa lembrança por ter conseguido se manter firme diante de tantas ameaças recentes à democracia.
“A data se faz relevante porque a média mundial das Constituições é de apenas 19 anos, e poucas delas passaram por testes de resiliência tão fortes”, afirma o professor.
Ele lembra que houve o tempo em que jovens saíram às ruas para exigir que a Constituição fosse cumprida. Por outro lado, uma nova onda pediu recuo. “A partir de 2013, começou a surgir uma parcela da população achando que o Brasil evoluiu demais e precisava da volta de um regime autoritário”, diz Vilhena.
Essa onda de “populismo autocrático” foi um momento de grande estresse para a Constituição, na visão da professor.
Houve, então, a tentativa de usar um “legalismo autoritário”, através da criação de normas e decretos, para neutralizar a Constituição. Porém, as instituições asseguraram a sua sobrevivência. “Isso não quer dizer que a democracia está garantida. Sempre estaremos sujeitos a ataques”, lembra o professor.
Para Vilhena e Maria Garcia, o que adianta uma Constituição forte se ela não se faz cumprir. Por isso, o maior desafio, na visão dos professores, é fazer valer, de fato, os direitos fundamentais – mesmo a partir de um texto considerado extenso.
“Quanto maiores os problemas, maior deve ser o texto do contrato. Se está lá que nenhuma criança deve ser negligenciada é porque nós não cuidamos delas”, diz Vilhena.
Ele compara, por exemplo, à Constituição da África do Sul, após apartheid, que reforçou a questão de igualdade, ou a Indiana que acabou com o sistema de castas. “Temos muitas injustiças, e todas elas precisaram ser listadas”, concluiu o professor.
A professora de direito constitucional da PUC-SP, Maria Garcia, reitera que a Constituição ainda não está “totalmente em vigor na sociedade”, e levanta, ainda, a questão de que as emendas retalham o seu texto de forma grave.
“O artigo 14 fala do direito de voto, plebiscito e referendo, e já temos mais de 100 emendas que nunca foram colocadas em consulta popular. Todas são legais porque foram elaboradas a partir do artigo 60 [que regulamenta as emendas], mas nenhuma delas é legítima, porque não houve a manifestação popular”, defendeu a professora.
Para que essa realidade mude, é preciso investir em educação política, só com ela a população entenderá a importância de fazer parte dessa cobrança.
“O Brasil padece desse analfabetismo político. A Constituição, por exemplo, é algo que deveria ser ensinado na escola, nas mais diferentes fases de aprendizagem”, disse Garcia.
Política x Supremo
Vilhena deu sua visão sobre a politização da Justiça, tema que tem sido levantado a partir do julgamento de temas que ainda geram conflitos na sociedade, como a descriminalização do aborto, o marco temporal indígena e a liberação das drogas.
Esse debate, segundo o professor, deve ser capaz de distinguir quando alguns atos são delegados ao Supremo, e quando esse tribunal está praticando uma usurpação do Direito.
“A primeira politização é de responsabilidade direta do sistema político, que não é capaz de solucionar problemas agudos da sociedade. O problema do aborto é sério? Quantas mulheres morrem a buscar aborto? Qual a resposta do legislador? Nenhuma. Alguém, então, terá de reclamar no Supremo. É questão de arranjo político”, avalia Vilhena.
Por outro lado, é preciso debater alguns pontos que são, de fato, preocupantes. “Ter a última palavra dada por um único ministro e não um colegiado é um problema grave”, pontua o professor.
Um pouco de história: uma Constituição participativa
O que fez da Constituição brasileira ser tão ampla e completa, lembra Vilhena, foi a maneira como ela foi elaborada. Uma comissão constituinte com 500 pessoas foi organizada em subcomitês temáticos, e os debates foram abertos à participação pública.
“Na época senador, Fernando Henrique Cardoso ficou a cargo de criar um regimento interno”, lembra o professor. “Passaram mais de 200 mil pessoas por essas discussões. A primeira fase foi aspiracional, reunindo tudo aquilo que a sociedade queria e, no segundo momento, as lideranças políticas foram negociar o pacto político”, explicou Vilhena.
Com tanto debate, foi possível incluir todos os temas possíveis, deixando margem para a criação de leis que regulamentassem o que ficou sem solução. “Jogamos conflito de interesses para que o legislador resolvesse, ao contrário dos americanos que apenas tiravam do documento os pontos que geraram discordância”, conta o professor.