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Entrevista: como a psicanálise lida com a saúde mental

By 8 de setembro de 2022No Comments
Entrevista: como a psicanálise lida com a saúde mental

Após o início da Campanha de Saúde Mental 2022, em curso em todo o Estado (leia AQUI), a Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo dá continuidade à série de entrevistas e matérias especiais acerca do tema. O empenho da CAASP em levar à advocacia informações de relevo no campo da saúde mental, cuja demanda está constatada, soma-se aos serviços médicos oferecidos no âmbito da CAASP Saúde e aos eventos esportivos e de lazer, imprescindíveis para o bem-estar psicológico.

Desta vez, a reportagem conversou com Eliana Ribert Nazareth, psicóloga e psicanalista. Membro e docente efetiva da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi), da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal), da International Psychoanalytical Association (IPA) e autora do livro Mediação: o conflito e a solução (São Paulo: Arte Pau-Brasil, 2007), Nazareth concedeu a seguinte entrevista à CAASP:

CAASP – A que se deve o aumento dos transtornos mentais nos últimos tempos?

Eliana Ribert Nazareth – Deve-se à pandemia. Foi um evento complexo e que ainda está passando por estudos para ser entendido. O que se observa nos consultórios é que todos os transtornos aumentaram. O suicídio teve – e já vinha tendo – um aumento terrível no mundo todo, a ponto de Reino Unido criar um tipo de ministério específico sobre o tema.

Houve um crescimento da depressão infantil e em adultos, tratamentos de doenças em geral foram interrompidos por conta do medo de ir até o hospital. De fato, no início não se podia ir, mas depois, quando a situação se estabilizou, poderiam retomar e muitos não voltaram, gerando as consequências que estamos vendo agora.

A pandemia em si deixou algumas coisas muito graves para o ser humano. A primeira foi o medo – uma coisa é ter um pavor esporádico, outra é o medo constante. A pandemia fez isso com as pessoas, algumas se isolaram mais do que o necessário, a ponto de não conseguirem pegar o elevador do prédio em que moram.

A segunda foi a perda da rede de apoio que o afastamento obrigatório gerou. Obviamente, isso foi crucial para evitar a propagação do vírus, mas trouxe sequelas porque gente precisa de gente. Um terceiro ponto foi a perda do emprego ou de negócios. Em suma, todos ficaram muito mais expostos a conflitos e transtornos. As crianças, por exemplo, impedidas de irem à escola, muitas delas desenvolveram fobia social.

Como a psicanálise atua nesses casos gerados pela pandemia?

A psicanálise foi criada por Freud, como a maioria das pessoas sabe. É uma técnica específica que promove um contato mais profundo do individuo consigo mesmo, de modo que a vida consciente não seja o centro do nosso psiquismo. Fazendo uma analogia, a vida consciente seria a parte visível de um iceberg, e o inconsciente a parte submersa, que é sempre maior.  A psicanálise atua para que o indivíduo possa cada dia mais tomar conhecimento dos conflitos subjacentes aos sintomas.

Tanto a ansiedade quanto a depressão são manifestações de atritos psíquicos, de modo que a psicanálise, ao propiciar essa capacidade de reflexão, consegue agir na base dos sintomas e ver o que está acontecendo. 

O objeto da psicanálise é o inconsciente, portanto. Ela pode ajudar no combate ao estresse?

A base é a mesma. O individuo, em uma análise, vai poder esmiuçar questões da sua vida e isso se passa em todos os campos – relacionamentos afetivos, trabalho, família, expectativas em relação a si – para que ele comece a entender o que levou ao estado de estresse, porque o estresse não aparece da noite para o dia, aliás, nenhum desses sintomas de transtornos são engendrados da noite para o dia, tem todo um histórico, um percurso.

Muitos começam desde a tenra idade e, conforme o individuo vai crescendo e se desenvolvendo, algumas questões são elaboradas satisfatoriamente e outras não, são nessas ocasiões que esses atritos funcionam como um gargalo. Todo ser humano possui esse gargalo, a questão não é desmanchar esses conflitos, mas sim compreender que alguns são impeditivos de uma qualidade de vida para que essa pessoa possa viver com satisfação, com melhores escolhas e melhores relacionamentos. 

Muitos pensam que a psicanálise é “coisa de gente louca. Como podemos derrubar essa falsa ideia?

Os preconceitos são todos baseados na ignorância. Ignorância do que é aquilo, de como funciona determinada coisa. Se eu tenho uma rejeição em relação ao meu semelhante é porque eu ignoro a condição dele, de saber quem ele é e quais dores o afligem.

Se eu tenho preconceito de procurar ajuda profissional psicanalítica, atrelo-me a essa ideia de ser “coisa de louco”. Assim como ir ao dentista, ao oftalmologista ou fazer exame de rotina é se cuidar, é se prevenir contra doenças, procurar tratamento psicológico também é e não devia ser tratado como tabu.

Fora depressão e ansiedade, que outros transtornos costumam afetar os profissionais que trabalham sobre tensão, como os advogados?

Todo tipo de sintoma pode aparecer e eles não são engendrados da noite para o dia, possuem todo um histórico, têm características de personalidades e, na minha fala como psicanalista, nunca descarto a genética. Daí a concluirmos que não é qualquer um que desenvolverá determinada doença, mas aqueles que apresentarem um histórico e uma genética favoráveis a ela,  seja ansiedade, depressão ou alguma fobia. Importante: uma coisa é estar cansado por trabalhar demais, outra é estar estressado, são duas coisas muito diferentes.

O excesso de trabalho não estressa – ele cansa.  Gosto de fazer essa distinção porque abre uma janela de possibilidades para o individuo pensar sobre como ele vinha conduzindo a vida até o ponto de entrar em um estado de estresse. Esse estado tem componentes tanto físicos quanto psíquicos, por exemplo, o aumento da pressão e da glicemia podem desencadear síndromes metabólicas.

Então, a pessoa sob tensão pode desenvolver estresse, que é considerado uma doença, ansiedade, depressão, fobia social, dificuldades cognitivas. A pessoa que entra em um processo psicanalítico tem condições de examinar essas questões antes de chegar a um estado de estresse, mesmo sob forte demanda de trabalho. 

Muito se fala sobre a síndrome de Burnout. Como ela pode ser evitada e qual o olhar psicanalítico sobre esse tipo de transtorno?

Quem é o individuo que desenvolve a síndrome? Geralmente, o que se encontra em estudos é que há uma insegurança nessa pessoa, que ela busca a aprovação dos outros ou do ambiente e essa necessidade de aprovação aliada à insegurança é tão grande que, além da exigência já existente do cargo, ela começa a puxar mais trabalho para si. Como consequência, não consegue mais estabelecer limites e separar a hora de trabalhar da hora de descansar. Um exemplo claro disso é quando o individuo não respeita o seu horário de almoço e trabalha enquanto almoça, e dessa forma não consegue se dedicar devidamente a nenhum dos dois.

Essas fronteiras começam a se perder nesse indivíduo e, como ele possui o superego muito rígido, acabam refletindo nos outros a mesma exigência que possui consigo. Ele passa a exigir dos seus colegas de trabalho o mesmo comportamento.  A consequência é o afastamento das pessoas, o indivíduo sente-se isolado e propenso à depressão, mas não uma depressão como causa etiológica, e sim como decorrência de todo um processo.  Então você me pergunta como a psicanálise pode ajudar – o ideal é que a pessoa não espere entrar em crise para procurar auxílio, que ao perceber cansaço excessivo, ansiedade e preocupação demais, procure ajuda imediatamente para desfazer esse nexo causal.

Com a procura de um profissional logo nos primeiros momentos desse ciclo, quanto antes ela iniciar a análise mais cedo vai sair, porque, depois que se instala, o colapso fica mais difícil de ser vencido. 

Qual a hora de encerrar um tratamento psicanalítico? 

O melhor a fazer é conversar com o analista, porque às vezes há uma melhora do sintoma mas a interrupção pode fazê-lo retornar. As modificações estruturais de personalidade que a psicanálise faz ainda não estão consolidadas, a pessoa se sai bem, mas na primeira ventania ela se abala novamente, então é muito importante que as pessoas conversem com seus analistas sobre essas questões porque essas relações são muito específicas, não podemos generalizar.